Discos ao vivo e coletâneas ainda cabem em 2020?

 

Pleno 2020, ano da pandemia de covid-19, que coroa tempos muito duros para todos, chegam alguns lançamentos que acenam para tempo que ainda teima em dar as caras aqui e ali. Mas, como diz o outro, nada é tão antigo quanto o passado recente. Coletâneas e discos ao vivo. Alguém ainda se interessa? Alguém ainda pensa em comprar? Onde comprar? E quem está fazendo este movimento de mercado? Bem, gente grande. O White Stripes, que já acabou há mais de dez anos, está lançando sua primeira coletânea de hits, com 26 faixas. O Arctic Monkeys, o Iron Maiden e o eletrônico indie Postal Service (projeto paralelo de Ben Gibbard, do Death Cab For Cutie), estão soltando álbuns ao vivo. Claro, quando uso o termo “disco” ou “álbum”, estou falando de streaming, especialmente em termos de mercado brasileiro, que não abre mais espaço para lançamentos em CD, mesmo com Pitty lançando DVD ao vivo, justo neste fim de ano. Sim, porque, lá fora, estes títulos estão à venda nas lojas online e físicas, que resistem. E então? Cabe falar disso em pleno 2020, quase 2021?

 

Minha resposta é: sim, cabe. E explico. Os motivos e parâmetros que levam os artistas a escolherem seus “bests of” mudaram com o tempo. Se antes as canções tinham sua popularidade medida pelas execuções em rádio, pela venda de singles, pelo aparecimento do clipe na MTV – meios de aferição eficazes em diferentes intensidades há até menos de dez anos – agora, tudo se resume a visualizações, likes e cliques. As redes sociais assumiram o papel da convivência e da exposição das faixas que os artistas lançam, também nas próprias redes. A partir daí, com a ação da mídia especializada também limitada ao valor atribuído a curtidas e visualizações, os artistas vão percebendo as suas obras mais populares, mais visualizadas e as entendem como “hits”. No caso dos registros ao vivo, a ideia é dupla: revigorar o catálogo destes artistas e celebrar a belezura de se estar em uma plateia/palco, compartilhando a sensação de estar num show. E as ocasiões em que as apresentações ocorreram – ou seu propósito – dão o norte para estabelecermos um sentido para os lançamentos ao vivo. No caso do White Stripes, dupla de Jack White e Meg White, protagonista da música alternativa no início do século, a curiosidade fica por conta da consequente reapreciação da obra do duo, bem como um aceno aos velhos fãs dos Stripes e do próprio Jack White solo.

 

A antologia do White Stripes chegou na última sexta-feira, dia 04 de dezembro, às plataformas de streaming e aos canais de venda. O título não é nada criativo, “The White Stripes Greatest Hits” e traz 26 canções previamente lançadas, incluindo “Seven Nation Army,” “Fell In Love With A Girl,” “Hotel Yorba,” “Dead Leaves And The Dirty Ground,” “Hello Operator,” “Icky Thump,” “Apple Blossom,” e outros sucessos que White e Meg coletaram na primeira década do milênio. O lançamento motivou a remasterização de todos os vídeos da dupla e sua postagem no canal próprio no Youtube, incluindo também um novo clipe animado, para “Let’s Shake Hands”, a primeira canção gravada pela banda em sua sala de estar e lançada como um compacto de 7 polegadas em 1998, dirigido por Wartella (Cartoon Network). A recente chegada do vídeo animado, também dirigido por Wartella, da canção “Apple Blossom”, assim como o vídeo inédito da performance de “Ball and Biscuit” no show do White Stripes em Tóquio, Japão, em 22 de outubro de 2003. Ou seja: o lançamento da antologia de canções despertou todo um processo de reforço da imagem dos White Stripes no cenário musical atual, trazendo-os para os tempos em curso. Válido, né? Eu acho.

 

 

Os discos ao vivo seguem seu curso próprio, mas todos têm em comum o propósito inicial de qualquer lançamento desta natureza: misturar música e memória, vinculando datas e experiências conjuntas. Arctic Monkeys, por exemplo, traz um concerto no Royal Albert Hall, realizado em 07 de junho de 2018, justo quando a banda entrava em turnê mundial para divulgar o mais recente álbum de inéditas, “Tranquility Base Hotel + Casino”. Mesmo assim, o show, encapsulado em disco, DVD e demais mídias, não traz apenas as canções do novo trabalho, mas sim um greatest hits da carreira de Alex Turner e seus amigos. Minha predileta pessoal do grupo está no setlist, “505”, além de vários cavalos de batalha, como “Arabella”, “R U Mine?”, “Why’d You Only Call Me When You’re High?”, que se portam muito bem ao lado das novatas “Star Treatment” e “Tranquility Base Hotel + Casino”. De quebra, o lucro obtido com as vendas do álbum será revertido para a fundação War Child, que está ajudando a manter o sustento de crianças em regiões de conflitos armados em meio à covid-19.

 

 

O Iron Maiden, sabemos todos, é veterano em compilações e álbuns ao vivo. Com o passar do tempo, a banda inglesa se deu conta do imenso e dedicado público que tem na América Latina e outras regiões “fora do eixo”. Sendo assim, é mais do que lógico que Nights of the Dead, Legacy of the Beast” surja neste fim de ano, muito por conta da quantidade de shows que a banda precisou adiar por conta da covid-19. Gravado na Cidade do México, em setembro de 2019, com o show muito parecido com o que veio ao Rock In Rio em 2018, ou seja, clássicos como “Aces High”, “The Trooper”, “Two Minutes To Midnight”, em meio a um setlist vencedor, provado ao longo dos tempos e entoado por uma multidão de 70 mil pessoas. No outro lado do espectro sonoro, está o The Postal Service, celebradíssimo projeto paralelo de Ben Gibbard, do Death Cab For Cutie. Com apenas um disco no currículo, lançado no distante ano de 2003, “Give Up”, o grupo surgiu com muita força naquele início de década/século/milênio, mas o clamor dos admiradores da sonoridade indie/eletrônica perpetrada por Gibbard e cia, ficara até agora restrita. Qual não é a surpresa em ver que surge o belo “Everything Will Change”, gravado na turnê de dez anos do primeiro álbum, em 2013, num show em Berkeley, California. Com repertório de 16 faixas e versões cristalinas dos sucessinhos “The District Sleeps Alone Tonight”, “We’ll Become Silhouettes” e uma cover simpática de “Our Secret” (do Beat Happening), o disco ainda traz a participação de Jenny Lewis na banda que excursionou então.

 

 

E no setor nacional, a cantora Pitty vem com o DVD duplo “MATRIZ: Arquivos Completos”. Ela soltou nos aplicativos de streaming o áudio do show MATRIZ Ao Vivo Na Bahia (lançamento da Deck). Foi um show realizado na Concha Acústica, em Salvador, no qual Pitty recebeu os artistas que participaram do álbum; Lazzo Matumbi, Larissa Luz, Russo Passapusso e Robertinho Barreto (BaianaSystem). Acompanhada por sua banda composta por Martin (guitarra), Daniel Weksler (bateria), Guilherme Almeida (baixo) e Paulo Kishimoto (teclados), a cantora e compositora tocou todas as músicas do disco e vários sucessos de sua carreira. Além da apresentação, o DVD “MATRIZ: Arquivos Completos traz um making of com bastidores do evento, o documentário MATRIZ.doc (dirigido por Otavio Sousa), a minissérie VideoTrackz e os videoclipes de “Te Conecta”, “Noite Inteira”, “Bicho Solto”, “Ninguém é de Ninguém”, “Submersa” e o inédito “Motor”.

 

 

Em meio a essas mudanças no mercado, tradutoras da efemeridade dos nossos tempos, estes – entre outros – são movimentos que mostram que há, sim, como manter algumas tradições em uma época como a nossa. Pessoalmente, sou a favor de discos ao vivo, físicos, compilações, encartes e tudo mais, a um preço acessível. Também sou fã do streaming e acho que uma coisa não deveria anular outra, mas contribuir para que houvesse uma melhoria do mercado, com fãs dedicados e atendidos por demandas específicas. Ainda tenho fé de que isso irá melhorar. Enquanto não vem este novo/velho ciclo, vamos nos divertir com estes lançamentos aqui, todos ótimos.

CEL

Carlos Eduardo Lima (CEL) é doutorando em História Social, jornalista especializado em cultura pop e editor-chefe da Célula Pop. Como crítico musical há mais de 20 anos, já trabalhou para o site Monkeybuzz e as revistas Rolling Stone Brasil e Rock Press. Acha que o mundo acabou no início dos anos 90, mas agora sabe que poucos e bons notaram. Ainda acredita que cacetadas da vida são essenciais para a produção da arte.

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