Dexy’s Midnight Runners – soul irlandês no meio da New Wave
Você conhece o Dexy’s Midnight Runners? Muita gente pensa que eles são irlandeses, os relaciona com o filme “The Commitments” e só conhece seu maior sucesso, “Come On Eileen”. Quem já gastou um pouco mais de tempo para se informar a respeito do grupo, verá que, apesar de curta e conturbada, a trajetória do Dexy’s é ímpar, bem como o seu estilo. Em pleno pós-punk, os sujeitos adicionavam tinturas fortíssimas de soul a seu som, antecedendo, inclusive, a única banda da época que poderia ser classificada como um híbrido de rock com o estilo dos negros americanos: O The Jam, em sua segunda fase. Pois o Dexy’s já fazia esta mistureba em 1978, quando iniciou suas atividades. A gente está falando deles porque adoramos relembrar grandes bandas e artistas que se perderam no tempo mas este não é o único motivo: está saindo uma versão de luxo do segundo álbum do DMR, “Too-Rye-Ay”, de 1982, que só agora ganha a mixagem que o líder do grupo, Kevin Rowland imaginou para ele.
Quando falamos de trajetória ímpar, dizemos que o Dexy’s é peculiar porque lançou apenas três álbuns na primeira fase de sua carreira, entre 1980 e 1985. E, bem mais tarde, já na década de 2000, reagrupou-se e lançou outros três álbuns. Em comum nas duas fases a presença da mente pensante da banda, Kevin Rowland. Aliás, muita gente pensa que o Dexy’s é um grupo irlandês, dada a sua devoção à cartilha de Van Morrison, e dos elementos celtas que adicionou em seu segundo álbum, mas Rowland nasceu em Birmingham, Inglaterra, de uma família de irlandeses. A influência musical e cultural veio naturalmente, mas a ideia dele, quando saiu de uma banda punk para montar o Dexy’s era misturar heranças do chamado Northern Soul ao som que se fazia no fim dos anos 1970. O estilo vinha desde os anos 1960, uma espécie de apropriação cultural que ingleses e britânicos em geral fizeram da soul music americana.
Em seu tempo, como dissemos, o Dexy’s não tinha concorrente, a ideia foi mérito de Rowland e seus camaradas de banda. Em pouco tempo, mais precisamente, em 1980, a EMI já os contratava e eles se saíam com o álbum “Searching For The Young Soul Rebels”, no qual pisavam fundo nesta fusão com a soul music, chegando a homenagear o obscuro soulman Geno Washington que fizera muito sucesso na Inglaterra dos anos 1960. Foi o hit “Geno” que puxou o álbum e colocou o grupo no mapa daquele período borbulhante de bandas e misturas. Além da sonoridade única, o Dexy’s se apresentava no palco com vestimentas que lembravam os uniformes de estivadores americanos do início do século 20, justamente para estabelecer um vínculo entre as origens irlandesas da banda e dos próprios imigrantes que foram para a América.
“Searching For The Young Soul Rebels” é um dos melhores discos do seu tempo e, sem dúvida, um dos melhores dos anos 1980. É raro, no entanto, ver alguma lista que mencione o período o incluir entre os destaques, uma omissão criminosa. Além de “Geno”, o álbum tem várias canções maravilhosas, cheias de arranjos de metais e levadas decalcadas do soul americano, como “Keep It” (partes 1 e 2), “There There My Dear”, além de versões, como a do hit “Seven Days Too Long”, gravado em 1968 por Chuck Wood e “Respect”, composta por Otis Redding, mas famosa na voz de Aretha Franklin. Apesar do sucesso do álbum e da boa performance dele nas paradas inglesas, Kevin Rowland não ficou satisfeito com o resultado, achando que não havia suficiente acento irlandês nas gravações e arranjos, decidiu reformular totalmente a banda, mantendo com ele apenas o trombonista Big Jim Paterson.
O que parecia uma loucura provou ser, na verdade, um acerto. A EMI não aceitou a mudança e rescindiu o contrato, levando o Dexy’s a assinar com a Mercury e entrar no estúdio para a gravação do segundo disco. Com os novos músicos e decidido a resgatar a conexão irlandesa com o soul via Van Morrisno, Rowland preparou uma nova fornada de canções, dentre as quais “Come On Eileen”, que seria uma espécie de protótipo desta nova sonoridade almejada. Dito e feito, lançada como single, “Eileen” ultrapassou as fronteiras da Grã-Bretanha e pousou nas paradas americanas, um feito inédito até então. Tal fato disparou a curiosidade pelo novo álbum, “Too-Rye-Ay”, que saiu em outubro de 1982. De fato, a sonoridade era mais vinculada à herança da música de Morrison, mas o Dexy’s ainda permanecia como uma banda eminentemente de soul pop, com várias linhas maravilhosas de metais e arranjos em que o groove do Northern Soul prevalecia. Além disso, uma nova dupla de covers pavimentava o caminho das influências: “TSOP” (do grupo americano MFSB) e “Jackie Wilson Said (I’m In Heaven When You Smile), de Van Morrison, safra 1972.
Mas, novamente, Kevin Rowland não ficou satisfeito com o resultado das gravações e, sobretudo, da mixagem. Desfez a segunda encarnação do Dexy’s e manteve apenas a violinista Helen O’Hara. Com a chegada dos novos músicos, entre eles, o tecladista Mick Talbot, que também fazia parte do Style Council, o grupo embarcou para Nova York para gravar o terceiro álbum, que viria a ser o subestimado e anti-comercial “Don’t Stand Me Down”. Lançado em 1985, é um típico caso de disco à frente de seu tempo, uma vez que foi concebido como uma obra única, sem espaço para singles, o que, naquele tempo, era um tiro no pé para uma banda que tinha o apelo pop que o Dexy’s tinha, especialmente após ganhar o mundo com “Come On Eileen”. Ouvido hoje, “Don’t Stand Me Down” funciona que é uma beleza, sendo ele uma homenagem sincera à fase mais viajante de Van Morrison, registrada entre o fim dos anos 1970 e meados dos anos 1980. Mas, em 1985, ele causou o fim definitivo do grupo, com Rowland tentando entabular uma carreira solo poucos anos depois, gravando um disco, no mínimo, peculiar: “The Wanderer”, no qual ele vinha com versões lounge pop de clássicos do pop dourado dos anos 1960. Não funcionou e Rowland só voltaria à cena no fim da década de 1990, quando lançou outro álbum solo e decidiu refundar o Dexy’s, tirando o Midnight Runners do nome. Ainda hoje o grupo está ativo, gravando esporadicamente, mas sem o mesmo viço do início da carreira.
O que nos leva ao lançamento em questão, a versão tripla de “Too-Rye-Ay”, que recebeu o complemento “As It Should Have Sounded”.
Kevin Rowland nunca ficou feliz com a mixagem final do álbum. Por décadas, ele que sua obra-prima fora corrompida pela gravadora. Quando veio o 40º aniversário do lançamento de “Too-Rye-Ay” veio, a gravadora concordou em remixar o disco e Rowland chamou o antigo engenheiro de som da banda, Pete Schwier, que começou a trabalhar na melhora dos vocais, fortalecer a bateria e basicamente aquecer o som, com a participação do próprio Rowland e de Helen O’Hara. Todas as canções foram mexidas, exceto “Come On Eileen”, que permaneceu intocável. Temos então uma nova mixagem que não altera radicalmente um álbum tão amado e icônico, mas que dá um leve polimento e muda alguns detalhes importantes. Além do novo mix do álbum há um disco completo de lados B, o single pré-álbum “Show Me”/”Soon”, uma “radio edit” de “Eileen” e três outtakes inéditos (Let’s Make This Precious”, uma versão inicial de “Liars” chamada “Smoke Your Own” e “Until I Believe in My Soul”) para despertar os colecionadores. Pra completar, há um show completo da banda, registrado no Shafterbury Theater, em Camden Town, Londres, num total de 39 canções.
Dexy’s Midnight Runners é dessas bandas que surgem de tempos em tempos, totalmente fora dos esquemas vigentes e pensam que podem mudar o mundo, geralmente se dando mal em seguida. Só que, durante o tempo que estão em atividade, oferecem a seu público provas suficientes de sua relevância e importância. “Too-Rye-Ay” é seu álbum definitivo e merece ser conhecido por todo mundo.
Carlos Eduardo Lima (CEL) é doutorando em História Social, jornalista especializado em cultura pop e editor-chefe da Célula Pop. Como crítico musical há mais de 20 anos, já trabalhou para o site Monkeybuzz e as revistas Rolling Stone Brasil e Rock Press. Acha que o mundo acabou no início dos anos 90, mas agora sabe que poucos e bons notaram. Ainda acredita que cacetadas da vida são essenciais para a produção da arte.