Crocodilo e o absurdo do fim

 

 

 

Munida do meu próprio tratamento psicológico e psiquiátrico li com um certo atraso o romance “Crocodilo”, de Javier A. Contreras, lançado pela Companhia das Letras em 2019.

 

Tenho exercitado na terapia o verbalizar as sensações com pelo menos um pouco da coragem com que Javier desnuda os tabus sobre os descaminhos da mente e o suicídio na sociedade ocidental.

 

Pedro, um jovem e premiado documentarista de 28 anos se joga pela janela do seu apartamento em um fim de tarde, deixando seus pais a encarar o absurdo do poder que a morte tem de interromper sonhos, projetos e alegrias sem ao menos avisar.

 

Ruy, seu pai, um jornalista renomado e casado há quase 30 anos com Marta, ela também um profissional de destaque no mercado editorial, não se conforma com a decisão de Pedro e desaparece no dia do velório do filho, empenhando-se em buscar respostas para o que talvez não tenha explicação.

 

Na semana que se segue a perda de seu único filho Ruy se despedaça: procura o melhor amigo e a namorada de Pedro, faz conjecturas sem sentido, deixa de comer, de tomar banho. Enfim, vive toda a sua dor no corpo, nas aparências, na falta de vergonha e limites.

 

Narrado em primeira pessoa, “Crocodilo” se fortalece. Os processos do luto de um pai sem rumo têm a intensidade de uma confissão: uma pessoa que perde os pais é órfã, mas como chamamos os pais que enterram um filho, invertendo o processo que tomamos como natural?

 

Qual é o limite entre o natural e o comodismo?

 

Ruy mergulha em lembranças da vida com Marta, dos seus erros, das perdas anteriores ao nascimento de Pedro e os primeiros sinais do seu reconhecido talento, sendo o mais perturbador deles as idas ao zoológico, quando filmava com sua primeira câmera um crocodilo imóvel, com apenas os olhos para fora da água e o resto do corpo submerso.

 

Tal memória leva Ruy a se questionar se algum dia ele conheceu o próprio filho. Seria Pedro uma criatura escondida, a deixar que as pessoas tocassem apenas seu lado menos assustador?

 

Não somos todas e todos um pouco assim?

 

Em um trecho Marta diz ao Pedro criança que um bom livro te faz sentir. Se você sair ileso ao fim de um livro talvez ele, enfim não seja bom.

 

“Crocodilo” não nos deixa sermos os mesmos depois de sua leitura, seja pela escrita que arrebata, ou principalmente por dar nome e importância ao que nos assusta e nem por isso deixa de existir, causar rastros de dor e merecer entendimento.

 

Em 2020 o Brasil foi considerado o país com a maior taxa de pessoas com transtornos de ansiedade no mundo e o quinto em casos de depressão. Segundo estimativas da Organização Mundial da Saúde (OMS) divulgadas nesta quinta-feira, 23, 9,3% dos brasileiros têm algum transtorno de ansiedade e a depressão afeta 5,8% da população.

 

Ao dialogar com a complexidade individual e da nossa vida em sociedade, Javier lança luz e emociona com uma reflexão poderosa e necessária sobre dor além do físico, aceitação e coragem.

Debora Consíglio

Beatlemaniaca, viciada em canetas Stabillo e post-it é professora pra viver e escreve pra não enlouquecer. Desde pequena movida a livros,filmes e música,devota fiel da palavras. Se antes tinha vergonha das próprias ideias hoje não se limita,se espalha, se expressa.

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