BBB e o Grande Irmão

 

 

Vocês sabem, está no ar mais um BBB. É a VIGÉSIMA edição brasileira do reality show holandês, que se multiplicou mundo adentro, sempre com a ideia de “bisbilhotar” pessoas confinadas numa casa. No ano 2000, confesso, vi uns pedaços aqui e ali, afinal de contas, tratava-se de uma novidade midiática, num tempo em que o máximo de conectividade dos celulares era enviar uma mensagem de texto SMS. Das edições seguintes, nadica de nada. Talvez algum antropólogo tenha resistência para seguir assistindo ao programa ou, quem sabe, tenha capacidade para fazer uma “linha evolutiva” do BBB, tendo em conta que houve várias mudanças no roteiro e na própria concepção da atração global.

 

Toda vez que entra no ar uma edição do BBB, as redes sociais – fenômeno recente, se comparadas ao próprio programa – ficam divididas entre quem vê e quem não vê, com argumentos válidos em ambos os lados. Eu nada tenho contra os espectadores do BBB, mas confesso que faço um juízo negativo deles, especialmente hoje, tempo em que é possível ver milhares de filmes, séries, programas jornalísticos de vários lugares do mundo. Toda essa liberdade e as pessoas seguem prisioneiras do que a rede globo coloca nos lares nacionais, mas, bem isso é assunto pra outro texto. O que me incomoda mesmo é que os participantes – a esta altura, em número alto, se contarmos todas as edições – devem ignorar solenemente os motivos pelos quais o programa se chama Big Brother. E isso me incomoda até hoje.

 

Fico imaginando quantos deles já teve que ler “1984”, o romance distópico de George Orwell. Sei bem que é uma preocupação/aflição inútil, dane-se tudo isso. O que importa é entrar na casa e faturar o prêmio, lucrar com a mídia subsequente, cobrar cachê para aparecer em festas de debutantes ricas e tudo mais. Porém, me aflijo, sim. Especialmente quando a mídia se refere aos participantes como BROTHERS e SISTERS, numa distorção óbvia e irritante sobre o significado do próprio programa. Nem é o caso de dizer que Big Brother é o nome do ditador do livro de Orwell, uma espécie de remix de Hitler e Stalin e mais líderes totalitários europeus da primeira metade do século passado. Não adianta, mas eu vou.

 

Acho que a existência do próprio BBB é a materialização involuntária de um aspecto da narrativa orwelliana. A submissão das pessoas a um propósito que parece simples, mas não é. No livro, a Europa vive sob um regime chamado IngSoc, o “socialismo inglês”, que é tão socialista quanto o nazismo. Orwell, um sujeito que lutou com as brigadas internacionais na Guerra Civil Espanhola e membro/entusiasta do Partido Trabalhista Inglês, era um progressista, porém, era crítico dos rumos que o socialismo havia tomado sob Stalin. Bem, ele e muitos outros através dos anos engrossaram essa fileira de descontentes. Mas Orwell era de esquerda. E sabia que o fascismo e o nazismo, não. E que, sim, estes eram o inimigo a ser combatido ferozmente. Daí a sua sociedade distópica ser ambientada na Europa, sob a dureza de uma guerra perpétua, num ambiente em que a verdade é dúbia porque o governo se ocupa de manipulá-la e reescrevê-la, sem falar na caça ao pensamento livre e ao individualismo.

 

O governo do Grande Irmão orwelliano “bisbilhota” as pessoas através de um aparelho chamado “teletela”, que está em toda parte, em todas as casas e espaços, mostrando programação oficial e vendo quem está prestando atenção e quem está conspirando. Daí a ideia de batizar o programa como “Big Brother”, pelo fato de que os espectadores – e não os participantes – se tornam “big brothers” em relação ao que acontece no confinamento, com o poder que lhes é dado pela TV de observar, decidir quem sai, quem fica, enfim, interagir com o “espetáculo”. Não é preciso dizer que os vencedores do BBB se tornaram sub-celebridades e que, no devido tempo, foram esquecidos. As duas exceções talvez sejam Grazi Massafera, que se tornou uma atriz global e Jean Wyllys, que se tornou político e representante da esquerda progressista sob o PSOL. De resto, apenas o vazio do deserto de possibilidades.

 

O BBB alimenta uma indústria de mídia que tem o poder semelhante ao do Ministério da Verdade orwelliano. Ela manipula os fatos, distorce o que lhe interessa e joga a favor de quem esteja sintonizado com os mesmos “valores”. Na Europa e nos Estados Unidos, lugares em que as populações vivenciaram momentos históricos importantes, há a certeza de uma relativa oposição de pontos de vista na imprensa. Já em lugares como o Brasil, especialmente o Brasil pós-ditadura militar, a grande mídia … bem, nem é preciso falar muito.

 

Minha mente me propõe situações impossíveis. Lembro de imaginar como seria … instigante se a rede globo oferecesse exemplares de “1984” aos participantes do BBB. Já pensou? Ou se gastasse um Globo Repórter ou alguma atração da globo news para explicar a correlação. Como eu disse, situações impossíveis…

 

Em tempo: “1984” se tornou filme em … 1984. O resultado não foi sensacional como o livro, mas a trilha sonora tinha uma canção que fez bonito nas paradas de sucesso: “Sexcrime”, dos Eurythmics. O título faz alusão a um dos “mandamentos” do governo IngSoc: o sexo apenas com o propósito de procriação. Quem pensasse “naquilo” para outro fim, era considerado criminoso. Se pensarmos que o governo brasileiro vai iniciar uma campanha de ABSTINÊNCIA SEXUAL nos próximos dias, talvez não estejamos distantes nem dos aspectos mais delirantes da distopia orwelliana, que dirá dos mais possíveis…

 

CEL

Carlos Eduardo Lima (CEL) é doutorando em História Social, jornalista especializado em cultura pop e editor-chefe da Célula Pop. Como crítico musical há mais de 20 anos, já trabalhou para o site Monkeybuzz e as revistas Rolling Stone Brasil e Rock Press. Acha que o mundo acabou no início dos anos 90, mas agora sabe que poucos e bons notaram. Ainda acredita que cacetadas da vida são essenciais para a produção da arte.

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