Beatles, Rolling Stones? 1967 foi o ano de … Engelbert Humperdinck

A história da música pop tem suas deliciosas ironias. Tome-se, por exemplo, o ano de 1967, amplamente reconhecido como o da explosão definitiva da psicodelia, do Verão do Amor, de “Sgt. Pepper” e por aí vai. O ano em que o rock decidiu que o caminho era se entupir de LSD e viajar sem neuras num som colorido e onírico, em que todas as formas de comportamento eram liberadas. Pois lá vem a surpresa: o compacto mais vendido naquele ano lendário no Reino Unido, com Swingin’ London e tudo, foi “Release Me”, maravilhoso baladão old-fashioned gravado por um certo cantor de Leicester que atendia pela alcunha de Engelbert Humperdinck.

 

Nascido Arnold George Dorsey na cidade de Madras (atual Chennai), na então colônia britânica da Índia em 1936, o futuro astro pop mudou-se com os pais e os nove irmãos para Leicester aos dez anos de idade, quando ele começou a se interessar por música e aprender a tocar saxofone. Mais tarde, passou a cantor, adotando o nome Gerry Dorsey e lançando seu primeiro compacto pelo selo Decca em 1958. Durante quase uma década, sua carreira discográfica não teve nenhuma repercussão. Até uma mudança insólita de nome artístico.

 

Agenciado pelo amigo Gordon Mills – que também cuidava da carreira do então popularíssimo Tom Jones – desde 1965, Dorsey decidiu acatar sugestão do empresário e adotar o nome artístico de Engelbert Humperdinck, emprestado do compositor clássico alemão do fim do século XIX, autor da ópera “Hänsel und Gretel”, baseada no conto infantil dos irmãos Grimm (conhecido no Brasil como “João e Maria”). Seu primeiro single sob o novo nome, “Dommage, Dommage”, fez sucesso apenas na Bélgica. Nada comparável à repercussão do seguinte.

 

Composta em 1949 pelos norte-americanos Eddie “Piano” Miller e Robert Yount (embora outros créditos de autoria tenham sido acrescentados posteriormente), “Release Me” fez sucesso inicialmente em 1954 com o cantor country Ray Price, sendo mais tarde regravada por nomes como Jerry Lee Lewis, Roger Miller, Bobby Darin e Esther Phillips. E seria por acaso, numa versão instrumental feita pelo saxofonista britânico Frank Weir e entreouvida por Gordon Mills, que a canção chegaria a Engelbert Humperdinck.

 

A gravação com arranjo de Charles Blackwell foi lançada pelo selo Decca no início de 1967, mas de saída a repercussão foi nula. Conta-se que o estouro se deveu a uma daquelas obras do acaso que por vezes marcam a música pop: Engelbert Humperdinck fora chamado de última hora para substituir o adoentado cantor Dickie Valentine numa apresentação para o programa de auditório Sunday Night At The London Palladium, do canal ITV, de grande audiência nacional. Cantou seu novo single, “Release Me”, e – como diz o chavão – o resto é história.

 

A canção entrou para o Top 40 raspando, na 39ª posição, no dia 1º de fevereiro. No dia 22, já estava em quarto lugar. Subiu para o segundo na semana seguinte e de lá para o topo, onde ficaria por seis semanas, entre 8 de março e 12 de abril. Permaneceria ao todo 56 semanas consecutivas na parada, venderia quase 1,4 milhão de cópias e, no caminho, impediria os Beatles de chegarem ao primeiro lugar pela 18ª vez seguida: o compacto com “Penny Lane” e “Strawberry Fields Forever” teve de se contentar com o segundo posto por três semanas a fio.

 

Os caminhos do crooner de Leicester e da vanguarda roqueira se cruzariam logo depois em mais uma coincidência irônica: Engelbert Humperdinck estava no mesmo combo de atrações da primeira turnê britânica da Jimi Hendrix Experience, tendo cantado no mesmo Astoria Theatre (mais tarde rebatizado Rainbow) de Finsbury Park, Londres, na exata noite em que o guitarrista norte-americano incendiou sua guitarra pela primeira vez. Era 31 de março de 1967, e “Release Me” seguia no primeiro lugar da parada britânica de compactos.

 

Humperdinck fazia o gênero dos chamados clean cut performers, mais ao gosto de um público adulto e conservador. Sempre de terno e por vezes ostentando uma vistosa gravata borboleta, sua única ousadia era uma curiosa costeleta destacada ao pé do maxilar. Mas se as embalagens do cantor e da canção eram um tanto old-fashioned, o país em que aquele grito de “Liberte-me” fazia sucesso estrondoso parecia sugerir um outro sentido para o hit de Humperdinck. Um país que se soltava de amarras socialmente conservadoras.

 

O Reino Unido vivia naqueles tempos o auge do governo trabalhista do primeiro-ministro Harold Wilson, motor de uma série de transformações sociais no país. Eleito em outubro de 1964, num momento em que o partido conservador andava desgastado pelo rumoroso escândalo sexual que ficou conhecido como o Caso Profumo, Wilson aproveitou sua crescente popularidade para convocar novo pleito em março de 1966, no qual não só foi reeleito com folga como, de quebra, aumentou de forma considerável a bancada de parlamentares de seu partido.

 

Entre dezembro de 1965 e novembro de 1967, o progressista Roy Jenkins ocupou o cargo de Secretário de Estado para Assuntos Internos. São atribuídas à sua influência junto ao chefe de Governo medidas promulgadas neste período como a legalização do aborto, o fim da censura aos espetáculos teatrais e a quase extinção da pena de morte, entre outras as quais trataremos mais adiante. Ainda no fim de 1965, foi aprovado o Race Relations Act, conjunto de leis que puniam a discriminação racial com prisão.

 

Os dois governos Wilson daquela década (entre 1964 e 1970) também foram marcados por um investimento maciço em educação. Em seu primeiro mandato, o orçamento destinado a aquela pasta superou o da Defesa pela primeira vez na história. Até o último ano do segundo mandato foram criadas dezenas de novas universidades e escolas politécnicas, impulsionando a entrada de jovens da classe operária (onde o próprio Wilson tinha suas origens) nos cursos superiores e o crescimento significativo do número de mulheres nestas instituições.

 

“Please, release me, can’t you see?

You’d be a fool to cling to me

To live a lie would bring us pain

So release me and let me love again”

 

Diz a última estrofe do sucesso de Humperdinck. E o país em que a canção tocava sem cessar ainda tinha o divórcio como um processo bastante restrito, caro, longo e complexo – mas que deixaria de ser com o Divorce Reform Act, proposto em 1969. E também era um país prestes a assistir à descriminalização das relações homossexuais (ainda que limitadas a homens maiores de 21 anos e em ambiente privado), cuja pena de prisão seria abolida em 27 de julho daquele mesmo ano de 1967 mediante o novo Sexual Offences Act.

 

Três meses antes, na semana de 19 de abril, “Release Me” havia sido enfim destronada do primeiro lugar. Não por nenhum single psicodélico revolucionário, mas por “Something Stupid”, clássico do easy listening interpretado por Frank e Nancy Sinatra. Na virada de junho para julho, o compacto seguinte do cantor, “There Goes My Everything”, seria impedido de chegar ao topo por “Whiter Shade Of Pale”, do grupo protoprogressivo Procol Harum – agora sim, um legítimo e simbólico representante da Swingin’ London.

 

Mas Humperdinck ainda teria mais uma vitória antes do fim do ano com outro clássico de seu repertório alcançando a primeira colocação: “The Last Waltz”, outra balada easy listening que havia sido gravada em francês naquele mesmo ano por Petula Clark e por Mireille Mathieu, passaria cinco semanas em primeiro lugar entre 12 de setembro e 10 de outubro. E no cômputo geral de 1967, um ano em que dali por diante a cultura e a sociedade britânicas nunca mais seriam as mesmas, “Release Me” entraria para a história como o single mais vendido.

 

Nota do editor: “Quando Quando Quando”, lançada cerca de um ano depois, e cuja estrutura melódica lembra demais “It’s Not Unusual”, sucesso de Tom Jones, é uma das melhores músicas do mundo.

 

Emmanuel do Valle

Emmanuel do Valle é jornalista profissional e pesquisador diletante, não necessariamente nessa ordem.

One thought on “Beatles, Rolling Stones? 1967 foi o ano de … Engelbert Humperdinck

  • 20 de novembro de 2019 em 20:22
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    ” Lesbian Seagull “, essa musica consta na trilha sonora do desenho Beavis and Butt-head

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