Bacurau é um Épico Brasileiro
“Bacurau”, novo longa escrito e dirigido Kleber Mendonça Filho, em parceria com Juliano Dornelles, é um épico. Por este termo – até meio banalizado em nossos tempos – podemos entender algo que “marca uma época”, ou seja, uma obra de arte que tem características suficientes para dar a noção precisa de um lugar ou tempo específicos. “Bacurau” é assim. Vê-lo significa estar diante de uma série de manifestações culturais – sociais, artísticas, estéticas – que são próprias do Brasil que vivemos hoje, 2019. Mesmo que o filme logo avise ao espectador que a trama que virá se dá “daqui a alguns anos”, a gente já sabe que este futuro presumido é aquele que advém da nossa situação presente. Sendo assim, é uma espécie de ficção científica muito verdadeira.
Sim, porque “Bacurau” é um filme de ficção científica. Talvez seja melhor definí-lo como “ficção realista”, um termo inexistente, mas que cabe perfeitamente aqui. A história é simples e assombrosa: uma cidade do interior de Pernambuco vive como muitas no país. Longe de tudo e todos, sem presença do estado, sem ajuda dos governantes – que só surgem em época de eleição para fornecer mecanismos que mantém a cidade e sua população como sempre estiveram: estáticos e dependentes. Sendo assim, resta ao povo de Bacurau viver como dá. As pessoas se ajudam, distribuem mantimentos de forma igualitária, vivem em harmonia e respeitam as individualidades de seus poucos habitantes. Até que começamos a perceber que algo está errado e que uma tragédia impressionante terá lugar.
A mágica do filme de Mendonça e Dornelles é não entregar que tipo de tragédia é essa. Mesmo que sejam dadas evidências cada vez mais contundentes, algo em nós – pelo menos em mim – se recusa a acreditar no que está se descortinando. O nível da violência e da brutalidade que vão surgindo na tela bate recordes terríveis como a cena em que o oficial alemão acorda entediado em “A Lista de Schindler” e, para passar o tempo, resolve praticar tiro ao alvo em judeus que trabalham no pátio do campo de concentração. Ou como a proposta do parque de diversões de Westworld. Ou a cerimônia em Logan’s Run ou as execuções públicas em The Handmaid’s Tale “Bacurau” tem este nível de desumanidade e tudo vai sendo mostrado ao espectador sem rodeios. Uma vez desfeita a barreira da (des) humanidade, entendemos o que estamos vendo com total nitidez. E ficamos pasmos. Profundamente. Ainda que, ao fim de tudo, faça terrível sentido.
Kleber Mendonça e Juliano Dornelles conseguem inserir esta brutalidade sem tamanho numa lógica familiar a povos como o nosso. Não dá pra não pensar nos conquistadores portugueses e espanhóis exterminando índios porque achavam que estes “não eram seres humanos”. Ou nos supracitados nazistas da Segunda Guerra. A postura é a mesma, a crueldade avassaladora e intrínseca são as mesmas e tudo ocorre com uma naturalidade espantosa. Em meio a este colapso civilizacional que o filme esfrega na cara da plateia, há espaço para mostrar com metáforas muito simples, a falta de união da sociedade brasileira e as tentativas patéticas de muitos de nós procurarem ser o que não são: estrangeiros, brancos, europeus, norte-americanos, civilizados, limpos, de cabelos lisos. O filme destrói estas tentativas com contundência invejável e inapelável.
Além das metáforas e da triste realidade, “Bacurau” tem mensagens subliminares materializadas em números, nomes, circunstâncias e fatos que mostram os erros recentes que esta mesma sociedade equivocada e desapegada cometeu. Está tudo presente na tela, com cores vivas, psicodélicas, fantásticas, estranhas, ao mesmo tempo próximas de um John Carpenter – cineasta americano homenageado com música na trilha e nome de escola na cidade de Bacurau – e muito devedoras do Cinema Novo dos anos 1960.
“Bacurau” é muito brasileiro, muito real, muito forte e muito necessário. Fico pensando, em devaneios ficcionais, como seria se ele fosse exibido em praça pública, em escolas, em universidades, de graça. Ele é uma mensagem, um recado fortíssimo sobre os nossos dias. “Bacurau”, repito, é um épico e deve ser o filme mais importante a ser feito no país em muitos e muitos anos.
Carlos Eduardo Lima (CEL) é doutorando em História Social, jornalista especializado em cultura pop e editor-chefe da Célula Pop. Como crítico musical há mais de 20 anos, já trabalhou para o site Monkeybuzz e as revistas Rolling Stone Brasil e Rock Press. Acha que o mundo acabou no início dos anos 90, mas agora sabe que poucos e bons notaram. Ainda acredita que cacetadas da vida são essenciais para a produção da arte.
Como professora, discordo completamente desta crítica e tantas outras, tão vagas quanto esta.
Empregar tanta violência em nossas telas e nossa “programação cultural” só fomenta a violência que os professores sofrem em sala de aula, vítimas da falta de educação de base- que nem pais e nem escola conseguem promover.
Sem contar o fomento dos modismos, como automutilação que os adolescentes e jovens vêm seguindo.
Pena que o cinema brasileiro tenha que se utilizar de recursos tão apelativos, uma vez que temos tanta riqueza natural, cultural e histórica.
Perde-se verdadeiramente a oportunidade de se criar uma obra épica.
Queria entender o que agrega, de fato, em valor em nível político, cultural, educacional, social.
Como professor, discordo do seu comentário. O que agrega é a possibilidade de um futuro tão violento quanto retratado no filme caso o povo não acorde. Essa é a função do filme, a meu ver. A sociedade se organiza e combate quem lhe quer mal.