Astrud Gilberto muito além da Bossa Nova

 

 

 

Acordamos com a notícia triste do falecimento de Astrud Gilberto. Ela foi, durante um bom tempo, a cantora mais importante e conhecida do Brasil no exterior, responsável pela voz em “The Girl From Ipanema”, canção que popularizou a Bossa Nova em nível mundial, gravada em 1963. Filha de pai alemão e mãe brasileira, ele, professor, ela, instrumentista, Astrud já tinha certa familiaridade com a música, mas a participação no clássico de Tom Jobim e Vinícius de Moraes foi sua primeira gravação profissional, aos 22 anos. E aconteceu por acaso: na cabine de gravação do estúdio da Verve Records, em Manhattan, naquele dia 18 de março de 1963, estavam monstros como o produtor Creed Taylor, o letrista Norman Gimbel (que compôs a versão em inglês de “Garota”), o engenheiro Phil Ramone, além de João Gilberto (então, marido de Astrud), o saxofonista Stan Getz e o próprio Tom Jobim. Taylor queria alguém para cantar a versão em inglês e Astrud se ofereceu para a tarefa. O resultado – um dueto entre João e Astrud – foi parar em “Getz/Giberto”, o álbum que catapultou a Bossa Nova para os Estados Unidos e, dali, para o mundo.

 

 

Este episódio, ainda que pareça o início de uma carreira brilhante, marca, na verdade, um grave caso de abuso. Astrud, inexperiente e jovem, recebeu apenas 120 dólares por sua participação em “Getz/Gilberto”. João, segundo “Chega de Saudade” (livro escrito por Ruy Castro), lucrou cerca de 23 mil dólares, enquanto Stan Getz arrebatou perto de um milhão de dólares. Além disso, a participação dela foi omitida dos créditos do álbum, mesmo sua interpretação sendo indicada ao Grammy  como “Melhor Gravação” em 1964. Nos meses seguintes, ela integrou a banda de Getz num papel secundário, ganhando mal, ao mesmo tempo em que via seu casamento com João terminar por conta da relação dele com Miúcha.

 

Felizmente, Astrud meio que renasceu em 1965, deixando a banda de Getz e todo o resto para trás, iniciando, de fato, uma carreira vitoriosa na Verve, tendo gravado, de 1965 a 1971, nada menos que oito discos solo – “The Astrud Gilberto Album” (que lhe rendeu mais uma indicação ao Grammy de melhor interpretação vocal, feminina), “The Shadow Of Your Smile”, “Look To Rainbow”, “Beach Samba”, “A Certain Smile, A Certain Sadness”, “Windy”, “September 17 1969” e “I Haven’t Got Anything Better To Do” – tendo a chance de trabalhar com luminares como Gil Evans e Walter Wanderley (e com Quincy Jones, em “Who Needs Forever”, tema de “Deadly Affair”, thriller dirigido por Sidney Lumet. Além destes, Astrud também gravou dois álbuns para a CTI Records, “Astrud Gilberto with Stanley Turrentine” e “Now”, até 1972.

 

 

Os primeiros trabalhos, registrados até 1966, investem nos desdobramentos e interpretações de Astrud como uma cantora de Bossa Nova, pegando todos os standards possíveis do estilo e colocando-os a serviço de sua voz agridoce. A partir de “A Certain Smile…”, de 1967, os produtores começaram a enxergá-la como uma cantora versátil o bastante para se apropriar do cancioneiro pop mais universal da época. Não por acaso, é deste álbum a bela versão dela para “Call Me”, cavalo de batalha interpretado por Chris Montez no ano anterior e gravado por todo mundo que importava naquele tempo. Neste disco ela trabalhou com o sensacional organista Walter Wanderley mas foi com “Windy”, de 1968, que esta transição ficou mais forte. Já na faixa-título Astrud surge triunfal, levando sua formosura também para “Never My Love” (ambas foram sucesso com o grupo The Association) e até para uma releitura belíssima de “In My Life”, dos Beatles. Mesmo assim, ela não deixou seu repertório original de lado, trazendo “Chup Chup I Got Away”, “Crickets Sing For Anamaria” (ambas de Marcos Valle) e “Dreamy” (Luiz Bonfá) para compor o álbum.

 

 

Essa tendência se intensificaria nos trabalhos seguintes, com destaque para o impressionante “September 17, 1969”, um disco psicodélico e plural, no qual Astrud interpreta canções gravadas por Beatles (“Here, There And Everywhere”), Doors (“Light My Fire”), Harry Nilsson (com uma adorável “Don’t Leave Me”), Chicago (“Beginnings”), além de momentos realmente belos, como a versão anglo-francesa para “Love Is Stronger Far Than We” e o pequeno épico soft-psicodélico “Summer Sweet parts 1 & 2”, espantoso para uma voz que, cinco anos antes, representava a garota de Ipanema no inconsciente das pessoas. Os álbuns gravados para a CTI são o ápice deste movimento. Mesmo que Creed Taylor, dono da gravadora, tenha sido um dos responsáveis pela exploração que Astrud sofreu no início da carreira, ele sabia muito bem que apostar no talento dela era garantia de sucesso. Em “Astrud Gilberto with Stanley Turrentine”, de 1971, ela passeia com graça e desenvoltura por um repertório que vai de Eumir Deodato a Bacharach/Davis, passando por Jorge Ben (com uma versão jazzística e sensacional de “Zazueira”), Edu Lobo e Milton Nascimento. Em “Now”, do ano seguinte, ela reinventa novos sucessos de Jorge Ben (“Take It Easy My Brother Charles”) e Milton Nascimento (“Bridges”, a versão em inglês de “Travessia”), sem falar em algumas composições autorais, como a ótima “Zigy Zigy Za”, uma reinvenção de “Escravos de Jó”, com viagens instrumentais deliciosamente pop e “Daybreak”, impressionante. Ainda são dignas de menção as versões para “General da Banda” (de Blecaute) e “Baião” (de Luiz Gonzaga).

 

 

Depois deste álbum, Astrud iniciou um processo de reclusão. Ela ainda gravaria um disco em 1977, “That Girl From Ipanema”, tentando atualizar algumas composições dos tempos da Bossa Nova sem muito sucesso, mas, realizando um sonho antigo: gravar com ninguém menos que Chet Baker, o que aconteceu na faixa “Far Away”. Ao longo dos anos seguintes, ela se apresentou com seu repertório mais clássico em poucos festivais de Jazz na Europa e nos Estados Unidos, gravou com a James Last Orchestra em 1986 e parecia fadada ao esquecimento, quando participou da campanha contra a AIDS promovida pela Red + Hot Organization, sendo convidada para gravar “Desafinado” por um fã recente, George Michael. No ano seguinte, Astrud realizou mais um disco solo, “Temperance”, em 1997 e anunciou sua aposentadoria permanente dos palcos e aparições públicas em 2002, após lançar um último e fraco álbum: “Magya”.

 

 

Os últimos tempos, no entanto, foram extremamente difíceis para Astrud Gilberto, que completou 83 anos em março deste ano. Suas experiências no mundo da música a afetaram profundamente e prejudicaram sua confiança nas pessoas, tendo feito vários álbuns sem contratos formais, apenas acreditando na palavra dos contratantes e produtores. Recebeu menos do que deveria, teve muito menos créditos como compositora do que merecia. Ela viveu seus últimos dias isolada, em seu apartamento com vista para o rio, na cidade americana da Filadélfia, com a companhia de um gato e as visitas e ligações dos filhos. Acabar isolada e desconhecida é um destino doloroso para uma artista tão exuberante, que seu filho João Marcelo descreve com razão como “a cara e a voz da bossa nova para a maioria do planeta”. Ela merece ser homenageada como uma cantora que trouxe alegria ao mundo com uma música que, em suas próprias palavras, deu a todos “romance e sonho”.

 

 

Aqui embaixo a gente deixa uma playlist com uma amostra do que Astrud gravou fora dos parâmetros bossanovísticos aos quais é sempre atrelada. Era uma cantora plural, de rara espontaneidade e técnica. Uma pena a sua partida.

 

 

CEL

Carlos Eduardo Lima (CEL) é doutorando em História Social, jornalista especializado em cultura pop e editor-chefe da Célula Pop. Como crítico musical há mais de 20 anos, já trabalhou para o site Monkeybuzz e as revistas Rolling Stone Brasil e Rock Press. Acha que o mundo acabou no início dos anos 90, mas agora sabe que poucos e bons notaram. Ainda acredita que cacetadas da vida são essenciais para a produção da arte.

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