“Air” é filme ou propaganda?
Em primeiro lugar, é bom que se diga: “Air” é um bom filme. Tem um ótimo elenco, encabeçado por Matt Damon, Jason Bateman, Viola Davis, Ben Affleck (que também o dirige) e fala de um evento não tão distante no tempo, a assinatura do contrato entre a multinacional americana Nike e o futuro melhor jogador de todos os tempos do basquete mundial, Michael Jordan. O roteiro foi escrito por Alex Convery, a partir de fatos reais da época e com inspiração no documentário “The Last Dance”, exibido pela Netflix em 2020, que tem o foco na temporada 1997-98 de Jordan. O resultado é, digamos, controverso.
Dá pra analisar “Air” de duas formas. Como cinema é, repito, um bom entretenimento. Quem é fã de basquete não deve perder, porém, o filme não é sobre Michael Jordan e aí entra a segunda forma de analisar a produção. É um longa sobre um feito publicitário dentro de um contexto ultracapitalisa – o governo Reagan nos Estados Unidos, tempo em que o neoliberalismo, a faceta mais agressiva do sistema econômico, foi posta em prática. Sendo assim, se você espera algo mais concreto sobre a vida ou a carreira de Jordan, esqueça e vá buscar o tal documentário da Netflix. “Air” é sobre publicidade esportiva e como ela foi modificada a partir daí. Em 1984, a Nike enfrentava um período de vacas magras. Era a terceira empresa esportiva em lucros nos Estados Unidos e, em termos do segmento basquete, vinha bem atrás de Adidas e Converse. Sua divisão de publicidade para o esporte tinha a liderança de Sonny Vaccaro (Matt Damon), um fã-estudioso do esporte, responsável por ter ideias e apontar potenciais atletas para a empresa patrocinar.
Como as vendas e o faturamento não iam bem, Sonny adentra o ano de 1984 com pressão total por parte da diretoria e de Phil Knight (cofundador e CEO da empresa, vivido por Ben Affleck). Sonny vê em Michael Jordan, então um calouro na NBA, o potencial para ser o atleta escolhido e, com isso, alavancar as vendas da empresa, levando-a para outro patamar em termos de patrocínio esportivo. A partir daí tem início um processo de convencimento por parte do funcionário em relação à incrédula empresa, terminando com o sinal verde para que uma reunião com Jordan e sua família seja marcada. Nesta altura, o público já sabe o que vai acontecer e fica por conta dos detalhes internos do processo de abordagem e convencimento da família do jogador.
O resultado foi a criação da linha de tênis Air Jordan, que, após o sinal verde do jogador e sua mãe, começou a ser produzida pela empresa e, como todos sabemos, foi um sucesso de vendas já no seu primeiro ano de comercialização, 1985, excedendo os 160 milhões de dólares, contra os três milhões de projeção inicial. Os desempenhos de Damon, Jason Bateman (que vive o publicitário Rob Strasser), Chris Tucker (Howard White, um dos funcionários da Nike, que se torna muito amigo de Michael Jordan) e, especialmente, Viola Davis (como Deloris Jordan, mãe do jogador e indicada para o elenco pelo próprio), fazem de “Air” o que costumamos chamar de “cinemão”. Mas há algo em sua essência que me deixou com a pulga atrás da orelha. Não é uma obra sobre os feitos de Jordan até seu ingresso na NBA. Tudo o que ele fez, seus anos como aspirante à liga de basquete americana, seus dilemas familiares, suas vontades e aspirações, surgem como detalhes ínfimos diante do feito publicitário que reergueu a empresa e encheu o caminhão do atleta com dólares, para, a partir disso, medir seu valor.
Para quem não se incomoda com detalhes históricos e sociais, “Air” é diversão garantida por conta de sua história, elenco e pelo bom trabalho de recuperação de memorabilia dos anos 1980, seja nos comerciais televisivos, seja pelas músicas – mal aproveitadas – em profusão, seja pela competência do roteiro. Mas não é um filme sobre Jordan, é um filme que celebra a realização mercadológica da empresa Nike e, por que não, funciona como uma grande e competente peça publicitária de sua tenacidade como valor agregado. Saí meio desconcertado da cabina, mas, ora, quem se importa?
Carlos Eduardo Lima (CEL) é doutorando em História Social, jornalista especializado em cultura pop e editor-chefe da Célula Pop. Como crítico musical há mais de 20 anos, já trabalhou para o site Monkeybuzz e as revistas Rolling Stone Brasil e Rock Press. Acha que o mundo acabou no início dos anos 90, mas agora sabe que poucos e bons notaram. Ainda acredita que cacetadas da vida são essenciais para a produção da arte.