Série Relicário lança álbum ao vivo de João Gilberto

 

 

 

João Gilberto – Ao Vivo no Sesc, 1998
118′, 36 faixas
(Selo Sesc)

 

5 out of 5 stars (5 / 5)

 

 

 

 

Quando João Gilberto morreu, em junho de 2019, o governo federal vigente àquela época, não fez qualquer homenagem ao cantor baiano, num desleixo inimaginável – até para aquelas pessoas – e imperdoável. Desde então, num silêncio vergonhoso para a perda de alguém da estatura de João, estamos vivos do jeito que dá, mas um pouco menos brasileiros e menos felizes. De alguma forma, este bravo lançamento do Sesc, através de seu selo musical, vem amainar esse vazio, ao mesmo tempo que oferece ao mundo mais uma chance de ouvir uma das apresentações do mestre. É bom que se diga: nunca é demais ouvir João ao vivo, cada show era único, seja por repertório, seja pelo próprio artista. Ele era exímio manipulador de emoções, que vinham de várias origens e circunstâncias. Aqui, neste registro de uma apresentação acontecida no Sesc Vila Mariana, em 5 de abril de 1998, João estava especialmente comunicativo e feliz. Para os 546 felizardos e felizardas presentes, deve ter sido uma noite memorável.

 

 

São 36 canções em generosos 118 minutos, ou seja, quase duas horas ininterruptas diante de um repertório que traz o Brasil ideal, ou, como disse meu amigo Zeca Azevedo por conta da morte de João, um Brasil-Avatar. É a ideia primordial de tudo o que vimos de bom sobre o nosso país e que, claro, nunca chegou a se concretizar. João era como um – para usar um termo da moda – metaverso portátil, no qual tudo deu certo. A Ipanema da virada dos anos 1950/60 se espalhou para o resto do país, a nossa cultura foi valorizada por uma sucessão ininterrupta de governos democráticos, que defenderam nossas manifestações culturais mais básicas e que, a partir disso, deu ao povo a chance de conhecer mais e mais, tornando-se forte, respeitável e dono de real poder de decisão. Como eu disse, um Brasil que nunca se realizou, mas que, de alguma forma, com a beleza extrema do canto, do repertório e da própria figura de João Gilberto, se torna possível, nem que seja por estes 118 minutos.

 

 

João desfila uma sequência de sambas, transmitindo o que ele sempre disse, que não era um cantor de Bossa Nova, mas de samba. Com esta afirmação, inseria automaticamente a produção de Tom Jobim e cia. no mesmo nível dos clássicos de décadas anteriores, acabando com celeumas estéticas que separam o que, realmente, é da mesma origem. Sendo assim, ele vai percorrendo um circuito que contempla até uma canção que ele jamais gravara até então, “Rei Sem Coroa”, de Herivelto Martins e Valdemar Ressureição, sobre a história do rei Carlos II, da Romênia, que, deposto pelo nazismo, veio morar no Rio dos anos 1940. Além dela, uma verdadeira procissão de canções que tocam no inconsciente coletivo, como “Violão amigo”, de Armando Marçal e Bide, de quem canta também “A primeira vez”. De Dorival Caymmi, um dos seus compositores preferidos, João pinçou “Doralice” (parceria com Antonio Almeida), “Rosa Morena” e “Saudade da Bahia”. “Isto aqui o que é?”, de Ary Barroso, outro preferido de João, e o choro “Carinhoso” (Pixinguinha e João de Barro) também estão presentes. E ele interpreta ainda três músicas gravadas por Orlando Silva, o cantor que mais admirava: “Curare” (Bororó), “Aos pés da cruz” e “Preconceito” (as duas últimas de Zé da Zilda e Marino Pinto).

 

 

Da lavra mais recente, bossanovista, João vai percorrendo “Corcovado” e “Wave” (de Tom Jobim), “Retrato em branco e preto” (de Tom e Chico Buarque), “O pato” (Jayme Silva e Neuza Teixeira), “Chega de saudade” (Tom e Vinicius), “Desafinado”, “Samba de uma nota só” e “Caminhos cruzados” (as três de Tom e Newton Mendonça) são algumas das músicas do movimento que João ajudou a fundar no repertório. Mas há detalhes presentes. João incentiva o público a acompanhá-lo em “Chega de Saudade”, o que acontece, a princípio, de forma tímida, mas que vai ganhando força à medida em que os presentes vão vendo que o cantor está se divertindo a ponto de dizer: “Eu gosto desse coro, às vezes fico com vergonha de pedir”. Após ser ovacionado por conta disso, ele pergunta se os presentes sabem cantar “Wave” e logo emenda a canção que gravou no álbum “Amoroso”, de 1977. Ao fim do show, uma versão mais leve que o ar de “Este Seu Olhar”, uma das mais belas composições de Tom Jobim, meio esquecida pelos admiradores recentes de sua obra.

 

 

“Ao Vivo No Sesc” é um pequeno milagre do resgate histórico e da pesquisa musical num país tão cruel como o Brasil. É a chance de ouvir um João leve e à vontade, fazendo o que ele mais gostava na vida: cantar o nosso país. Parabéns aos envolvidos.

 

 

Ouça primeiro – o disco todo

 

Em tempo: o álbum está disponível para ser ouvido no site do Sesc Digital. Será lançado em CD duplo em 26 de abril e também estará nas plataformas de streaming.

CEL

Carlos Eduardo Lima (CEL) é doutorando em História Social, jornalista especializado em cultura pop e editor-chefe da Célula Pop. Como crítico musical há mais de 20 anos, já trabalhou para o site Monkeybuzz e as revistas Rolling Stone Brasil e Rock Press. Acha que o mundo acabou no início dos anos 90, mas agora sabe que poucos e bons notaram. Ainda acredita que cacetadas da vida são essenciais para a produção da arte.

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