A Última Sessão de Música – 13/11/22 – Mineirão

 

 

A aparente fragilidade de Milton Nascimento ao fim de seu último show, esconde um detalhe marcante: foi o cantor e compositor carioca/mineiro/universal que escolheu o seu momento de sair dos palcos. Não foi uma fatalidade. Não foi a morte. Claro, alguém mais pragmático dirá – com razão – que Milton já não tem a mesma voz e a mesma força de antes, mas, o ato de sair numa última excursão pelo país – e exterior – com uma ótima banda e um repertório que passa a maior parte de sua carreira a limpo, é, repito, um ato de força e fé. Este show no Mineirão lotado é um dos eventos que proporcionam ao espectador comum ver a História acontecendo diante de seus olhos. Não importa se ele esteve lá ou viu a transmissão ao vivo do evento pelo Globoplay. Este 13 de novembro de 2022 foi o dia em que Milton pisou pela última vez num palco e nada mais pode ser feito ou dito.

 

 

Não cabe aqui qualquer crítica à forma vocal de um artista que teve na voz a sua principal marca. Se o registro outrora vigoroso e pungente emocionava a tantos, hoje, o que ouvimos é a prova de um esforço hercúleo que, se causa estranheza inicial, reveste de emoção inédita uma série de canções que nos acompanham há tempos. Ouvir, por exemplo, “Amor de Índio”, que Milton registrou ao vivo em 1986, em seu álbum “A Barca dos Amantes”, com a voz atual, dá ao conto de amor e vivência uma dimensão além da vida humana, talvez a interpretação mais justa para tal obra. Assim acontece com várias outras canções – “Volver a los 17”, “Morro Velho”, “Tudo Que Você Podia Ser”, “Cais”, “Ponta de Areia”, todas passam a ser entoadas por um homem-entidade que parece ter, enfim, testemunhado tudo o que ele mesmo podia ser. E foi.

 

 

Milton consegue algo muito sincero e sério na arte de cantar e se apresentar para um público: morrer estando vivo. Sua persona artística faz uma despedida justa, intensa e revestida de sentimento, mas que não tem um traço único de tristeza. É uma saída triunfal, magnânima, generosa, superior. Digna de sua obra.

 

 

E, por falar em obra, o show “A Última Sessão de Música”, em sua última apresentação, trouxe um setlist praticamente perfeito. Foi um registro cronológico dos maiores e mais significativos hits da carreira de Milton Nascimento, com espaço para canções pouco lembradas, como “Outono” ou “Vera Cruz”, mas que fez desfilar colossos como “Maria Maria”, “Para Lennon e McCartney”, “San Vicente”, “Nos Bailes da Vida”, “Canção da América”, toda em versões únicas, proporcionadas pelo que Milton é hoje.

 

 

Teve espaço para convidados queridos. Lô Borges, Beto Guedes, Toninho Horta e Wagner Tiso representaram o núcleo do “Clube da Esquina”. Samuel Rosa, com quem Milton cantou uma rara versão de “Trem Azul”, veio como um representante contemporâneo da música de Minas Gerais. Nelson Angelo surgiu para cantar sua canção “Fazenda”. Teve espaço para um bloco em homenagem à dupla Pena Branca e Xavantinho, marcada pela passagem de “O Cio da Terra” e “Calix Bento”, que formou um belo medley com “Peixinhos do Mar” e “Cuitelinho”.

 

 

Para o bis, Milton reservou “Coração de Estudante”, dele e de Wagner Tiso, que voltou ao palco para uma versão piano e voz. Teve “Travessia” e o fecho emocionante com “Encontros e Despedidas”. É digna de nota a presença do vocalista Zé Ibarra ao longo do show, como uma espécie de alívio vocal para os limites de Milton, funcionando como um contraponto para notas altas, que o velho Bituca já não consegue alcançar.

 

 

No fim da última sessão de música com Milton Nascimento, o público tem a certeza de ter feito parte de uma celebração rara, delicada, mas forte ao mesmo tempo. É um desses eventos que ainda irão ecoar por muito tempo e que, pleno 2022, nos dão a chance de reencontrar nosso caminho para um Brasil que nos acolhe e com o qual podemos sonhar de olhos abertos.

 

 

Obrigado, Bituca.

 

Setlist

OS TAMBORES DE MINAS
PONTA DE AREIA
CATAVENTO/CANÇÃO DO SAL
MORRO VELHO
OUTUBRO
AMOR DE ÍNDIO
VERA CRUZ /PAI GRANDE

QUE BOM AMIGO

 

ENTRAM WAGNER TISO, BETO GUEDES, TONINHO HORTA, LÔ BORGES

PARA LENNON E MCCARTNEY
UM GIRASSOL DA COR DE SEU CABELO

CAIS
TUDO QUE VOCÊ PODIA SER
SAN VICENTE
CLUBE DA ESQUINA 2
LILIA
NADA SERÁ COMO ANTES
A ÚLTIMA SESSÃO DE MÚSICA

 

FÉ CEGA FACA AMOLADA/PAULA E BEBETO
VOLVER A LOS 17 – ZÉ IBARRA

O TREM AZUL – COM SAMUEL ROSA

CALIX BENTO/PEIXINHOS DO MAR/CUITELINHO
O CIO DA TERRA
CANÇÃO DA AMÉRICA
CAÇADOR DE MIM
NOS BAILES DA VIDA

TEMA DE TOSTÃO/FAZENDA/BOLA DE MEIA BOLA DE GUDE (COM NÉLSON ANGELO)
MARIA MARIA

 

BIS

CORAÇÃO DE ESTUDANTE – COM WAGNER TISO

TRAVESSIA  – COM WAGNER TISO E TONINHO HORTA
ENCONTROS E DESPEDIDAS – COM WAGNER TISO E TONINHO HORTA

CEL

Carlos Eduardo Lima (CEL) é doutorando em História Social, jornalista especializado em cultura pop e editor-chefe da Célula Pop. Como crítico musical há mais de 20 anos, já trabalhou para o site Monkeybuzz e as revistas Rolling Stone Brasil e Rock Press. Acha que o mundo acabou no início dos anos 90, mas agora sabe que poucos e bons notaram. Ainda acredita que cacetadas da vida são essenciais para a produção da arte.

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