A opção consciente – e única – pela nostalgia

 

 

“As fantasias sobre o passado, determinadas pelas necessidades do presente, têm um impacto direto nas realidades do futuro.”

Svetlana Boym

 

Daqui a dois anos, em 2026, completarei incríveis trinta anos escrevendo sobre música. Meu primeiro texto publicado foi uma resenha sobre o álbum “Set The Twilight Reeling”, de Lou Reed, assinado com meu amigo Leonardo Salomão. Está lá, na secão de lançamentos do segundo número da Revista Rock Press, com Joey Ramone na capa. Era o nosso grande sonho, escrever e refletir sobre o que estávamos ouvindo, expressar nosso gosto pessoal, quem sabe poder influenciar as pessoas e convencê-las a conhecer algo novo. Sim, desde o início, minha intenção como jornalista voltado para a área cultural foi revelar o novo, estivesse no presente, estivesse no passado. A gente sabe: o novo real é aquilo de que ainda não tomamos conhecimento e, à medida que o tempo foi acelerando mais e mais, cada vez menos informações fomos capazes de reter e, a partir daí, transformar em conhecimento. E esta regra quase matemática, com ares de inversão proporcional, só fez aumentar com o passar dos anos. Sendo assim, o novo está em qualquer lugar, basta que a gente entenda que é ele que nos faz avançar.

 

Digo isso porque já acreditei que o melhor do nosso tempo estava no passado. Creiam, nada pode ser pior do que ver o mundo assim. A nostalgia, palavra originalmente criada em 1688, por um médico suíço, que buscava diagnosticar a saudade de casa que exilados sentiam, é algo tão contemporâneo como o presente. Aliás, em nosso tempo, a nostalgia faz parte do presente, ela é um sintoma da maneira como vemos o mundo. Se há algumas décadas era possível olhar para o futuro e imaginar carros na lua e colônias humanas em Marte, com todo mundo se entendendo e buscando o aprimoramento pessoal, como em Jornada Nas Estrelas, dos anos 1980 em diante, eventos do presente tornaram praticamente impossível pensar no futuro com otimismo. Sendo assim, a nostalgia – que nunca esteve fora de moda – invadiu as mentes das pessoas, acenando com um lugar confortável e familiar, algo de que parecemos precisar em tempos como os atuais. E como vivemos num sistema capitalista que só faz avançar em ganância e busca de lucros a qualquer custo – humano, natural, planetário – a nostalgia, claro, tornou-se um mercado.

 

Disso, espero, você já sabe. Ou deveria saber. Em essência bem simples, a nostalgia como um meio de vida é um enorme desperdício, que turva o nosso presente. Enquanto estamos voltados para o passado, ou melhor, para tentativas mercadológicas de reproduzir um passado que nunca voltará, abandonamos o olhar para o futuro e desprezamos o presente. Como dizia a professora de Literatura Comparada na Universidade de Harvard, Svetlana Boym (1959-2015), a nostalgia é “um desejo por um lar que não existe mais ou nunca existiu”. Esta é uma visão elástica e adaptável a várias perspectivas da vida. Cultura, religião, sociedade, arte, tudo é balizado pela visão/sensação que temos do tempo. Houve momentos da História, não por acaso, os mais terríveis, nos quais a Humanidade não era capaz de olhar para o futuro. Só para ficar num dos exemplos, a Idade Média, sob monopólio do saber pela Igreja Católica, vitimou o olhar para o futuro, pois este simplesmente não existia, visto que o juízo final era tido como certo – e usado como meio de obtenção de lucros e favores por parte de sacerdotes e demais membros do clero em diferentes níveis. Ou seja: nos alienarmos do presente e de suas possibilidades nos faz abdicar das possibilidades do futuro enquanto optamos por tentar recriar o passado. É isso.

 

Agora, como estamos num veículo que pretende falar sobre música pop, imagine o que acontece se abrimos mão de falar sobre o que acontece agora em favor de tentativas torpes de recriar o passado, que, como o nome já diz, passou? É esta batalha diária que travamos na Célula Pop. Claro que temos artigos, listas e assuntos que dizem respeito a grupos, bandas, artistas que produziram obras no passado. Isso não tem nada a ver com ser nostálgico, mas atender à missão que temos desde sempre – de apresentar o novo. Sempre haverá alguém disposto a ler e saber sobre alguma obra que não entendeu na época em que foi criada, alguma banda ou artista que, mesmo já tendo encerrado sua carreira, permaneceu inédito na folha corrida de um grupo pequeno ou grande de ouvintes. E ainda teremos aqueles raros casos de gente que produziu arte atemporal, que não envelhece, ou que, uma vez reavaliada com o passar de algum tempo, assume novos ares. Todos esses exemplos têm em comum a busca pelo novo.

 

Nostalgia é outra história. É nociva, mercadológica e feita para estabelecer certos níveis imperceptíveis de controle. Ela mantém as pessoas presas a uma experiência que já acabou, iludindo-as e dando a impressão de que é possível retomá-las. Se aplicarmos a nostalgia como mola-mestra na formação do gosto musical de um público médio, o que teremos? Aqui no Brasil, por exemplo, teremos gente presa num looping em que bandas como Nickelback, Red Hot Chili Peppers, Foo Fighters, Linkin Park, Capital Inicial – só para ficarmos no pop rock – , com obras marcadas pelo oferecimento de níveis baixos de novidade, contemporaneidade e zero inquietação, dominando a preferência de um público que procura reviver dias melhores e menos rápidos em suas vidas. Tal busca é auxiliada por veículos de comunicação que não têm qualquer compromisso com o presente, que lucram e se perpetuam a partir da nostalgia como produto do mercado e incentivam, por exemplo, a busca incessante de LPs de vinil como algo positivo enquanto fenômeno cultural. Veja, nada errado com ouvir músicas de antigamente e comprar discos de vinil de artistas do passado pagando preços altos e que nunca beneficiarão quem produziu ou gravou os discos, mas, fazer apenas isso é prestar um desserviço ao que temos acontecendo no mundo.

 

E o que temos acontecendo no mundo? Uma produção vibrante de artistas que buscam loucamente por espaço para divulgar o que fazem. Em toda parte, em vários países, bandas, cantoras, cantores, duos, trios, produtores e clamam por oportunidade de serem ouvidos. Suas obras florescem com a facilidade de gravação e divulgação proporcionada pela tecnologia. Claro que isso não resolve todas as questões que envolvem a produção musical e a tão sonhada viabilidade econômica, mas, enquanto pessoas preferirem olhar para o passado não como um tempo transcorrido, mas como algo que deve existir continuamente, por uma questão de lógica, não avançaremos.

 

Este texto é um desabafo e deve ter várias lacunas. Que seja. Ele serve para mostrar que precisamos ter consciência do tempo e de seu transcorrer. E que cada época das nossas vidas têm aspectos bons e maus, em doses semelhantes. Olhar pra isso com isenção é o primeiro ponto para se desprender de várias teias do sistema, do mercado, de religiões que sobrevivem a partir das angústias alheias. E se você tem um veículo de comunicação, aqui no Brasil, que se arvora a falar de música pop – ou cinema, quadrinhos, livros etc – tenha em mente que você está no presente. Encare o passado como algo que já foi e pense que o futuro depende de você também.

CEL

Carlos Eduardo Lima (CEL) é doutorando em História Social, jornalista especializado em cultura pop e editor-chefe da Célula Pop. Como crítico musical há mais de 20 anos, já trabalhou para o site Monkeybuzz e as revistas Rolling Stone Brasil e Rock Press. Acha que o mundo acabou no início dos anos 90, mas agora sabe que poucos e bons notaram. Ainda acredita que cacetadas da vida são essenciais para a produção da arte.

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