A obra prima do U2 faz 30 anos

 

 

A cerimônia do MTV Video Awards de 1993 teve, entre outras, uma apresentação do U2. Quer dizer, no palco só apareceu The Edge, de mãos vazias. Ele sentou no centro de um cenário composto por telas de diferentes tamanhos. Enquanto cantava impassivelmente a letra de “Numb”, imagens se sucediam nas telas, incluindo a de seus parceiros, Bono, Adam Clayton e Larry Mullen.

O que acontecera com aquele quarteto que se formara no final dos anos 70 em Dublin, se destacara no contexto do pós-punk britânico e se tornara uma das principais bandas de rock do mundo na segunda metade dos anos 80? Os caras eram os mesmos amigos da adolescência, tinham os mesmos colaboradores, mas algo mudara em sua música e em sua postura.

 

 

 

Achtung Baby, lançado em novembro de 1991, é exatamente o álbum que marca essa mudança, merecendo um documentário e um tributo. Para promovê-lo, a banda percorreu lugares em quatro continentes (América do Norte, Europa, Austrália, Japão), realizando 157 shows entre fevereiro de 1992 e dezembro de 1993. No meio da Zoo TV Tour, gravou o álbum seguinte, Zooropa (1993), que incluiu “Numb”.

 

Achtung Baby e Zooropa mantêm portanto uma continuidade direta, e, juntamente com Pop (1997), mostram a cara do U2 nos anos 90. Uma cara nova, como já percebemos. Mas não totalmente, como veremos. Vamos percorrer inversamente a linha do tempo para entender as complexas combinações de Achtung Baby.

 

 

 

Venha assistir TV no show do U2

 

A apresentação no MTV Video Awards de 1993 foi uma espécie de pocket show do que era a Zoo TV. Na sua concepção, telões de vários tamanhos e tipos eram um componente básico. A principal inovação (estamos falando de 1991!) foi permitir transmissões de canais de TV. Bono manipulava um controle remoto e as imagens apareciam nos telões.

 

A lógica era mais ou menos a seguinte: vivemos em um mundo de imagens e as imagens se tornaram o nosso mundo. Para o U2, o rock devia se adaptar a isso. Autenticidade era algo a ser superado, essa autenticidade que a banda tanto buscara expressar ao longo de diferentes fases nos anos 80.

 

O U2 aprendeu a não se levar (tão) a sério. Como parte dessa concepção, Bono criou personagens para o palco. “The Fly”, por exemplo, uma composição que emprestava pedaços de Elvis Presley, Jim Morrison e Lou Reed. Ele se desdobrava ora em um pregador mundano, ora em um diabo provocador.

 

Seria totalmente equivocado interpretar a nova fase como uma recusa da política. Nos anos 80, o U2 associou-se a várias causas, em especial a Anistia Internacional. Nos anos 90, a política não sai de cena. É mais correto dizer que mantém-se importante por outro caminho, em sintonia com a concepção mais geral da Zoo TV.

 

Havia em todos os shows um momento em que Bono pegava um telefone e ligava para alguém importante no cenário político, como o presidente dos Estados Unidos, George Bush. É claro que Bush nunca atendeu, mas Bono sempre deixava uma mensagem.

 

Na parte europeia da turnê, a banda estabeleceu conexões com ativistas em Sarajevo, então uma cidade sitiada em meio aos conflitos étnicos que explodiram nos Balcãs. Bono fazia ligações para esses ativistas, ou estes apareciam em transmissões de imagem, contando as notícias do front.

 

A Zoo TV, portanto, assumia um lado espetacular, misturando brincadeiras e coisas sérias. Mas essa configuração-arena combinava-se com outro cenário, um palco formado por um pequeno círculo que se projetava em direção ao público. Ali, os quatro músicos faziam um set acústico, cultivando (ou simulando) uma proximidade com os fãs.

 

Esse set era composto, em geral, por músicas antigas, que, portanto, não deixavam de participar do repertório dos shows. Na verdade, boa parte desse repertório trazia sucessos dos anos 80. As apresentações começavam com as novidades de Achtung Baby e prosseguiam com temas anteriores.

 

Havia também citações e versões de canções de outros artistas. No caso de Lou Reed, já homenageado pelo “The Fly”, a reverência juntava tecnologia de ponta e sonoridade acústica. Enquanto a banda tocava “Satellite of Love”, Bono interagia com a imagem e a voz Reed nos telões da Zoo TV.

 

A Zoo TV tinha essa pretensão de juntar muitas coisas. Misturava as músicas da nova fase com músicas mais antigas. Esbanjava no uso de bases pré-gravadas, mas também previa o palco acústico. Mobilizava uma estrutura que estava entre as mais complexas no showbizz (com um custo médio de 125 mil dólares por dia!) para criar uma experiência (sonora e política) de imersão. Não era pouca coisa.

 

 

Achtung Baby, as muitas caras do U2

 

O uso ampliado de sequenciadores na tour Zoo TV estava associado com a mais destacada novidade de Achtung Baby: a sonoridade eletrônica. Ocorre que, se atentamos ao conjunto das 12 faixas do álbum, as coisas são mais complicadas. Como sugere Flanagan no livro U2 At The End Of The World, Achtung Baby é uma junção de contradições.

 

As novidades foram anunciadas com “The Fly”, single que antecedeu o álbum em algumas semanas. Camadas de efeitos conferem um tom metálico e abrasivo à guitarra de Edge. A batida industrial de Larry sobre o baixo robusto de Adam está entrecortada por ruídos eletrônicos. Bono surge com uma voz distorcida. Realmente, o U2 soava diferente de quase tudo que produzira.

 

No single, “The Fly” é acompanhada por “Alex Descends Into Hell for a Bottle of Milk/korova 1”, cuja estranheza já começa no título. É um tema praticamente instrumental, que antecipa coisas que Adam e Larry vão propor em sua releitura de 1996 do tema do filme Missão Impossível.

 

No videoclipe de “The Fly”, produzido simultaneamente à finalização de Achtung Baby, somos apresentados ao personagem homônimo incorporado por Bono. Antes das imagens que mostram a banda em um estúdio sob frenética iluminação, o vocalista aparece confundindo pessoas nas ruas de Londres. O espírito prankster, que domina a concepção da Zoo TV, já se anunciava aí, juntamente com uma letra que pode ser apresentada como uma ligação telefônica desde o inferno com aforismos sobre a situação do mundo.

 

“Zoo Station” faz ótima companhia a “The Fly”. Com uma sonoridade bem semelhante, é a faixa que abre Achtung Baby. Bono diz “estar pronto”, o que soa como uma declaração sobre a atualidade da banda. Ao menos, até onde isso é possível: “O tempo é um trem que torna passado o futuro, deixa você na estação, sua cara amassada contra o vidro”.

 

Duas outras músicas, ambas destacadas como singles, confirmam que o U2 vinha com novidades em seu som. Mas aí começavam as conciliações com o passado. “Even Better Than the Real Thing” é eletrônica apenas em uma versão remix; a original é mais rock, com Edge fazendo um solo bastante blues. “Mysterious Ways” tem um groove de alta dosagem, que pode ser associado ao soul, segundo o comentário de Bono, “na tradição de Sly and the Family Stone”.

 

“Love is Blindness”, canção torturada que fecha o álbum, é uma espécie de jazz eletrônico. Sua composição remonta ao período de Rattle and Hum e Bono pretendia enviar a letra para Nina Simone.

 

Nas três faixas, portanto, há referências que vêm diretamente da black music, algo do qual a banda se aproximou fortemente em The Joshua Tree e no álbum seguinte. Em Achtung Baby, esse movimento não deixa de estar presente, mas sob outra forma. Para o vocalista, o desafio dos anos 90 era manter o ritmo aprendido com a black music sem se prender a suas raízes. E nada menos sem raiz do que a eletrônica.

 

Outro conjunto de músicas soavam diferentes em relação ao passado da banda, mas os timbres eletrônicos eram menos aparentes. “Who’s Gonna Ride Your Wild Horses”, também lançada como single, está aí, assim como as interessantíssimas “Until the End of the World”, “Ultra Violet (Light My Way)” e “Acrobat”.

 

Finalmente, há músicas que têm bem pouco a ver com a sonoridade eletrônica. “So Cruel”, com melodia feita no piano. “Tryin’ to Throw Your Arms Around the World”, com seu baixo e teclado malemolentes. E a balada “One”, que, ao contrário das anteriores, está entre as mais destacadas de Achtung Baby. Sua repercussão (com versões de outros artistas e inserções as mais variadas) a tornaria merecedora de um comentário de muitas páginas. A delicadeza de seu arranjo, com a voz tocante de Bono, conferiu-lhe enorme força. O tema da letra é o amor, mas as interpretações podem colocá-lo na relação entre um casal, numa conversa entre pai e filho, em mobilizações políticas, etc.

 

O amor, aliás, marca boa parte das letras de Achtung Baby, em continuidade com composições de outras épocas. Se “One” aponta para o suporte mútuo, outras faixas estão dominadas por separações e distanciamentos: “…Wild Horses”, “Ultra Violet” e “So Cruel” (“você diz que no amor não há regras”). “Tryin’ to Throw…” pega mais leve, parecendo narrar um retorno para casa depois de uma noitada. A relação de Bono em sua então já longa parceria com Ali e o rompimento do casamento de Edge estão nas entrelinhas.

 

Nas composições do vocalista, o amor frequentemente remete para forças superiores, que podem ser devastadoras, como em “Love is Blindness”, ou redentoras, como em “Even Better…” e “Mysterious Ways”. O amor é como a Salomé bíblica: estar perto de seus encantos pode custar a cabeça. “Salomé”, aliás, é o título de uma faixa que acompanha “Even Better…” na versão single. Personagens bíblicos voltam a aparecem em “Until the End…”, cuja letra imagina uma conversa entre Jesus e Judas.

 

Na verdade, cada música permite diferentes leituras. Flanagan, em seu livro, sugere que “Ultraviolet”, “Acrobat” e “Love is Blindness” são sobre a relação entre um casal. No entanto, ao comentar “Acrobat”, Bono reconhece que tem a ver com a mudança em suas letras: “parei de atirar pedras nos símbolos de poder óbvios e comecei a mirar minha própria hipocrisia”. Ou a cultivar a capacidade de iludir.

 

Nessa perspectiva, reaparecem os temas da Zoo TV. E “Even Better…”, que pode ser sobre amor, pode ser também sobre outra coisa. Como sugere seu videoclipe em que a banda aparece em uma vitrine de loja, a letra, para citar outro comentário de Bono, reflete sobre os tempos atuais, “quando as pessoas não buscam mais pela verdade, mas sim por gratificação instantânea”. Não teria o U2 concluído que não poderia ser diferente em 1991?

 

Se a eletrônica foi a linguagem encontrada para transmitir as novas mensagens, as faixas de Achtung Baby adotam estruturas que não eram distantes de trabalhos anteriores do U2. A banda continua a compor canções, nas quais a voz de Bono e a guitarra de Edge são os elementos marcantes, com a potente seção rítmica a cargo de Adam e Larry.

 

 

A história do mundo

 

Há outras indicações da presença da política no trajeto do U2 na época de Achtung Baby. A banda viajou para Berlim na véspera do dia que as duas Alemanhas deixariam de existir. A Queda do Muro havia sido crucial para a decisão de gravar o álbum naquela cidade. Eles queriam estar no que parecia ser o centro do mundo.

 

Outra coisa: a concepção da tour Zoo TV está inspirada na experiência inédita de poder acompanhar uma guerra pela TV. Não qualquer guerra, mas a invasão do Iraque pelos Estados Unidos em 1991. Os shows na América do Norte abriam com uma montagem que fazia Bush dizer: “We will rock you”.

 

Os meses finais de 1990 em Berlim, no entanto, foram duros para o U2. O que deveria ser inspirador, potencializado pelo Hansa Studios (onde David Bowie havia gravado), foi o cenário de uma crise. Sem ter se encontrado desde o começo do ano, os quatro descobriram que estavam com expectativas bem diferentes.

 

Bono mostrava-se entusiasmado com o rap e o som de Madchester. The Edge trazia inspirações de bandas industriais undergrounds. Adam queria fazer algo dançante, mas acabou se aliando a Larry na preferência por um terreno mais conhecido. Ou seja, eles não estavam se entendendo, embora o produto final tenha maravilhosamente conseguido juntar tudo isso.

 

Quem conseguiu desbloquear os caminhos foi Brian Eno, que chegou para acompanhar Daniel Lanois. Ambos estavam com o U2 desde Unforgettable Fire, quando pela primeira vez a banda usa algumas bases eletrônicas (em “Bad”, por exemplo). Muitas das músicas que entraram em Achtung Baby foram compostas em Berlim, mas o U2 precisou voltar para Dublin para chegar às combinações satisfatórias. Isso ocorreu ao longo de 1991 em diferentes estúdios. Em duas músicas, houve a colaboração de Steve Lillywhite, o produtor dos primeiros três álbuns do quarteto.

 

As novidades sonoras têm uma correspondência no material gráfico que acompanha Achtung Baby. A capa é uma colagem de imagens coloridas, e há muitas outras no encarte, todas de autoria de Anton Corbijn, que havia feito as fotos para The Joshua Tree. Algumas captam a experiência berlinense, de onde veio o nome para a primeira faixa do álbum – alguns Trabants, símbolo da indústria automobilística da Alemanha Oriental, foram usados no cenário dos shows. Outras têm motivos orientais, clicadas na viagem para o Marrocos em que gravaram o vídeo para “Mysterious Ways”. Há ainda as fotos dos quatro rapazes com roupas femininas, para mostrar claramente que não eram mais os mesmos.

 

O encarte traz ainda os nomes de dois presos políticos e endereços da Anistia Internacional. Outra organização citada é o Greenpeace, à qual o quarteto se juntaria em uma ação de protesto contra dejetos nucleares. Ela ocorreu em junho 1992 na Grã-Bretanha, ao final da segunda etapa da tour Zoo TV.

 

Sem perder a pegada política, o U2 se reinventava e mostrava sua relevância para os anos 90. Em sua escala de grandeza e trajetória musical, talvez o único paralelo possível seja com o R.E.M., que em 1991 lançou Out of the Time. Aliás, a banda de Athens incorporou “One” ao seu repertório nos shows.

 

Outro ponto comum entre U2 e R.E.M. é que ambos apontavam em direções que destoavam da onda grunge que logo viraria um maremoto. No caso do U2, havia uma sensação de que, diante das referências punks, metal e hard rock das bandas de Seattle, eles estavam no trem para o futuro.

 

E assim chegamos naquela cerimônia do MTV Video Awards de 1993, na qual se apresentaram, além do U2, o R.E.M. e o Pearl Jam. Não havia melhor demonstração de que as três bandas, apesar de suas diferenças, faziam parte do mesmo mundo. Nas premiações, o Pearl Jam se destacou, subindo ao palco várias vezes. Numa delas, Eddie Vedder comenta que o troféu se parece com Bono. Preocupado se o vocalista do U2 ficaria chateado, encontrou The Edge nos bastidores. O guitarrista conta a Vedder que acabara de falar com Bono: “Eddie, ele estava chorando.” Após alguns instantes, os dois caem na gargalhada.

 

Emerson G

Emerson G curte ler e escrever sobre música, especialmente rock. Sua formação é em antropologia embalada por “bons sons”, para citar o reverendo Fábio Massari. Outra citação que assina embaixo: “sem música, a vida seria um erro” (F. Nietzsche).

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