A mortalidade do Depeche Mode

 

 

 

 

Depeche Mode – Memento Mori
50′, 12 faixas
(Sony)

4.5 out of 5 stars (4,5 / 5)

 

 

 

 

 

Já se vão trinta e três anos da opção que o Depeche Mode fez pelos caminhos sombrios e estranhos da alma. Desde “Violator”, lançado em 1990, o então trio, formado por Martin Gore, Andrew Fletcher e David Gahan, abraçou esta visão cinzenta da vida e das pessoas, dando à sua obra uma profundidade, até então, inédita. A partir do álbum seguinte, “Songs Of Faith And Devotion”, o Depeche aprofundou esta postura – infusionando sua sonoridade com tons de rock e ainda mais camadas de angústia – e a trouxe até aqui, sem tirar o pé do acelerador. Seu trabalho mais recente, “Spirit”, de 2017, era um álbum que conclamava as pessoas à indignação com o estado das coisas, quase que na base da porrada. Agora, seis anos depois, o grupo lança “Memento Mori” (traduzido livremente do latim como “você também vai morrer”) como um duo, uma vez que Fletcher faleceu em 2022 por conta de problemas cardíacos. Sendo assim, o novo álbum foi revestido por uma camada extra de tristeza, uma vez que já trazia como inspiração a angústia e a morte causadas pela pandemia da covid-19.

 

 

“Memento”, ao contrário do que pode parecer, é uma audição fluida e que não joga o ouvinte para os subterrâneos da alma. Pelo contrário. É muito mais um álbum de superação da vida sobre a morte, talvez personificado na presença dos próprios Gaham e Gore, dois dos fundadores do grupo, que nunca estiveram totalmente de acordo sobre os rumos da banda e que, de maneiras próprias, já vivenciaram o fundo do poço. Gaham, por exemplo, já teve problemas terríveis com drogas, a ponto de ter quase morrido em 1996 – seu coração ficou quase dois minutos sem bater. Além disso, várias questões sobre domínio criativo marcaram a relação dos dois, algo que parece resolvido definitivamente neste novo disco, ainda que Gore permaneça como o principal compositor do grupo. Além da dupla principal, estão envolvidos velhos amigos, como o produtor James Ford (que também assinou “Spirit”) e os músicos Christian Eigner e Peter Gordeno, que seguram as pontas nas programações de sintetizadores e demais máquinas, como também sobem ao palco com a dupla remanescente. Aliás, o Depeche já está na estrada para divulgar o novo trabalho.

 

 

“Memento Mori” tem uma sonoridade complexa que parece simples. Ela é esparsa, elegantemente árida e não sobrecarrega o ouvinte e deixa espaço para que as letras – e que letras – tenham chance de brilhar. Além de Gore e Gahan, Richard Butler, ex-Psychedelic Furs, também participou do processo de composição de algumas das faixas do álbum. Os temas, como dá pra imaginar, orbitam as sensações trazidas pela pandemia, não exatamente felizes. A perda de Fletcher veio pouco depois, quando os trabalhos já estavam encerrados e a banda já se preparava para os registros oficiais das faixas, ou seja, um triste caso de vida que imitou a arte e que afetou diretamente as gravações em estúdio. James Ford, que também tocou e programou sintetizadores ao longo das doze canções, adicionou esses toques sutis e quase desconcertantes que surgem aqui e ali.

 

 

O single “Ghosts Again” é, sem dúvida, uma das mais belas canções da carreira do Depeche Mode. Não é pouco para um grupo que já tem mais de quarenta anos de atividade em meio a quinze álbuns lançados e um monte de remixes, apresentações ao vivo e tudo mais. A letra de Gore é bela ao extremo, falando de todo tipo de perdas que vivenciamos na vida, que vão nos levando pedaços – despedidas, tristezas, decepções – algo que pode ser resumido no lindo verso “Sundays shining/Silver linings/Weightless hours/All my flowers/A place to hide the tears that you cried/Everybody says goodbye”. Outros momentos sensacionais: “Don’t Say You Love Me” que parece um blues eletrônico cantado para a lua; “Soul With Me”, uma verdadeira balada pop-soul dramática e belíssima, algo absolutamente inesperado para um álbum do Depeche Mode. O revestimento de “People Are Good”, que mais parece uma reinterpretação de “Computer Love”, do Kraftwerk e o minimalismo que se abre em mil pétalas em “Before We Drown”.

 

 

“Memento Mori” não só dá continuidade a esta rara e nobre linhagem de álbuns do Depeche Mode, como ultrapassa vários já lançados pelo grupo e vai se juntar ao melhor que já fizeram numa carreira tão elegante, precisa e econômica. Não é surpreendente porque sabemos do talento dos sujeitos, mas não deixa de ser embasbacante a excelência do resultado alcançado aqui.

 

 

Ouça primeiro: “Ghosts Again”, “Don’t Say You Love Me”, “Soul With Me”, “Before We Drown”, “People Are Good”

 

 

CEL

Carlos Eduardo Lima (CEL) é doutorando em História Social, jornalista especializado em cultura pop e editor-chefe da Célula Pop. Como crítico musical há mais de 20 anos, já trabalhou para o site Monkeybuzz e as revistas Rolling Stone Brasil e Rock Press. Acha que o mundo acabou no início dos anos 90, mas agora sabe que poucos e bons notaram. Ainda acredita que cacetadas da vida são essenciais para a produção da arte.

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