“A Filha Primitiva”: filhas e mães que estão em todas nós
A autora cearense Vanessa Passos é considerada pelos seus alunos de escrita criativa uma espécie de doula dos livros. Dotada de tão bonita missão trouxe ao mundo seu primeiro romance, “A filha primitiva”, que concorre ao Prêmio Kindle de Literatura.
A voz que ouvimos e lemos no livro é a da filha branca, sufocada por desconhecer os segredos da mãe, mulher negra, analfabeta, que silenciou suas origens desde pequena, se apegando à religião para confrontar a dor de uma existência anulada pelo machismo, racismo e pobreza e a esperança de que o estudo pudesse dar à filha a vida que nunca teve.
Sua filha recém-nascida não sabe que veio a um mundo de sofrimento e falta de compaixão. Em vários momentos a narradora diz que se pudesse, não traria mais uma mulher ao mundo.
“Esperei mexer de novo pra dizer que era melhor morrer do que viver nesse mundo.”
Vanessa desconstroi a maternidade, mas não abandona o fato de que uma mulher está sempre parindo. Seja uma dor, o amor que não cabe no peito, uma angústia, uma história que nos nega a identidade, um filho. Possuímos corpos que gestam, dão vida e alimentam o que muitas vezes queremos matar.
A protagonista não cabe no seu novo papel de mãe porque não consegue caber em lugar nenhum, e carrega dentro das vísceras, da alma inquieta o peso do despertencimento. Em um dos muitos trechos dilacerantes do livro ela conta que quando criança uma professora pediu para que fizesse a árvore genealógica de sua família. Mesmo sabendo que não deveria, entregou o trabalho em branco. Ela não tinha o que escrever nele.
“Chorei sozinha constatando que a minha vida era um inventário de perdas’
Formada com muita luta em Letras e trabalhando como professora, é o dar à luz as palavras o que a faz ser humano inteiro novamente. Quando escreve, tem forças para olhar sua filha e não deixar que a mãe lhe negue mais uma vez saber de seu passado, por mais dolorosas que seja.
E ele é.
“É verdade minha filha, tenha paciência, eu vou lhe contar tudo o que eu sei, tenha paciência.”
Em um pouco mais de 70 páginas A filha primitiva jorra realidade. As personagens principais, as três mulheres que formam esse triângulo de dor, sangue, busca e renascimento não têm nome e Vanessa assim mostrou como sua história pode ser de qualquer uma de nós, que talvez tenhamos uma avó cuja ancestralidade foi apagada, uma tia que viveu um casamento em que seus sonhos e desejos não significavam nada ou até uma mãe que se culpa por não corresponder aos padrões impostos pela sociedade, que não quer saber o que a tornou um pouco dura com as pessoas ao seu redor.
Nós não damos o que não recebemos, não podemos pagar o que não deve ser cobrado. Ainda assim renascemos, cada uma a sua maneira, ao seu sangrar.
“Minha mãe me pergunta: você lê pra mim? Sorrio, acaricio sua cicatriz perto da boca e respondo. É a minha vez de lhe contar uma história”
Com sua escrita poderosa, Vanessa nos mostra que ser mulher dói, mas também cura e nos obriga a resistir todos os dias.
Beatlemaniaca, viciada em canetas Stabillo e post-it é professora pra viver e escreve pra não enlouquecer. Desde pequena movida a livros,filmes e música,devota fiel da palavras. Se antes tinha vergonha das próprias ideias hoje não se limita,se espalha, se expressa.