Entrevista – César Lacerda

 

 

Nas listas de fim de ano da Célula Pop, o quinto disco de César Lacerda – “Nações, Homens ou Leões” – chegou ao vice-campeonato, perdendo apenas no saldo de gols para “Drama”, de Rodrigo Amarante, mas também cravou duas canções entre as melhores de 2021: “Parque Das Nações” e “Amanhã”. Só é surpresa para quem não conhece a obra deste cantor e compositor mineiro, radicado em São Paulo, que já foi gravado por grandes artistas da música nacional e que tem uma carreira solo recheada de belos álbuns e canções.

 

Conversamos com ele sobre a feitura no último álbum e como ele enxerga o nosso tempo presente e o futuro, que já chegou. Com respostas certeiras e sinceras, César diz porque é uma das mentes brilhantes da música brasileira atual e porque ele deve ser ouvido por mais e mais gente atenta.

 

– “Nações, Homens ou Leões”, seu quinto disco, tem um conceito. Explica pra gente?

É um disco que tem um conceito que passa por uma tentativa de reflexão sobre alguns temas. Mas não é só isso. Essa reflexão tenta estabelecer uma relação entre esses temas, que são heranças da colonização, crise climática e tecnologia. O disco vai refletindo, problematizando e relacionando esses temas ao longo das onze canções. No entanto, o disco é dividido em três atos, cada um correspondente a uma palavra do título do disco e cada um desses atos vão refletindo sobre esses temas, ou seja, nação, espécie humana – o que a gente condensa no símbolo homem – e, por fim, leões, fechando a conceituação do disco.

 

– As canções que integram o álbum foram todas compostas fora do país? Muitas delas têm um olhar de distância/saudade…

Esse disco nasceu em 2019, quando eu fui convidado para fazer uma turnê em Portugal e Espanha. Como eu nunca havia passado um tempo longo fora do Brasil, eu decidi aproveitar esse tempo na Europa como uma espécie de residência artística para criar esse novo disco. Eu saí do Brasil muito interessado nos estudos raciais e nos estudos decoloniais, tanto que eu levo dois livros comigo: “Ideias Para Adiar O Fim do Mundo”, do Airton Krenak, grande e muito especial filósofo indígena brasileiro e “Memórias da Plantação”, da Grada Kilomba, artista transdisciplinar portuguesa. Eu escrevo essas canções fora do Brasil e peço para os parceiros – quando são eles que fazem a letra – Rômulo Froes, Ronaldo Bastos, Luca Argel – e então o disco começa a ser produzido no Brasil, em 2020, logo no início da pandemia.

 

– O seu disco chegou muito bem posicionado na nossa lista de melhores álbuns de 2021, com direito a duas músicas na playlist do ano…Em que medida esse tipo de reconhecimento da crítica te afeta?

É curiosa essa pergunta sobre o reconhecimento e a crítica e como isso me afeta, porque este lançamento tem sido muito particular na minha trajetória. Minha carreira fonográfica começa em 2013, com o meu primeiro disco. De 2013 a 2017, quando eu lanço o meu disco anterior, o “Tudo, Tudo, Tudo, Tudo”, havia por parte da crítica – falo de forma genérica, desde veículos tradicionais a veículos reposicionados, repensados para dentro da via digital – um interesse por tudo o que eu fazia. Eu sempre tive o privilégio de lançar discos e ter a escuta generosa e muito dedicada da crítica musical nacional. Com a chegada da pandemia, em 2020, eu escrevi um artigo para a Revista Bravo sobre a precarização no cenário cultural, que se deve absolutamente à chegada do bolsonaro ao poder, que leva em consideração a extinção da cultura como sempre o Brasil a entendeu e desejou. Mas isso também se deve a esse novo modelo de negócios muito particular do Vale do Silício. A pandemia acelerou um processo de migração de muito do que acontecia na vida real para o mundo digital. Eu sinto que o lançamento deste meu novo disco tem sido diferente porque a mídia, que costumava ter atenção a tudo o que eu faço, está vindo mais devagar. É um lançamento que tem exigido de mim mais paciência, até porque ele tem um pouco mais de exigência estética e conceitual, mas acho que a lentidão de uma parte grande da crítica se deve a essas particularidades: aceleração pra dentro do mundo digital, as características desse mercado digital, a pandemia, a tragédia desse governo bolsonaro. Então eu fico muito honrado quando um veículo como a Célula Pop, que eu admiro muito, olha pra minha produção de forma tão generosa, isso me deixa muito feliz.

 

– Conta pra gente como surgiu “Parque das Nações”, segunda faixa do álbum?

Metade do período que eu estive em Lisboa, eu estive nesse bairro, Parque das Nações. E duas canções do disco foram feitas lá: “Parque das Nações” e “O Que Eu Não Fiz”. Quando se grava no IPhone um áudio, se você não dá um título para aquela gravação, ela fica registrada apenas com o nome do lugar onde você registrou. Quando eu enviei para o Luca Argel esta canção, eu havia feito essa observação de que eu imaginava para esta canção. A minha relação com o bairro, que foi reconstruído para um evento cujo slogan era “os oceanos: um patrimônio para o futuro”, que era um evento de comemoração do que os portugueses identificavam como “os descobrimentos”. E eu acho essa terminologia errada, porque, para mim, o correto é “invasão”. Então essa é uma canção que parte desse princípio, tentar fazer uma reflexão contemporânea sobre esse assunto dos refugiados, os refugiados do clima e todo esse assunto. A Europa já vive isso, por conta de questões humanitárias, nacionais, climáticas, guerras e questões que, em geral, se for possível imaginar uma genealogia, a gente vai encontrar a colonização como uma força motriz que leva a esse momento atual. Então “Parque Das Nações” vai refletindo sobre tudo isso e eu convidei a Aline Frazão, que é uma cantora angolana, pra fazer esse dueto comigo e é um dueto lindíssimo.

 

– Seu disco tem participação de artistas portugueses, brasileiros e americanos. Como surgiram essas colaborações?

Eu preciso fazer uma pequena correção. Não há artistas portugueses no disco. Tem o Luca Argel, que é brasileiro, radicado no Porto e tem a Aline Frazão, que é angolana, que tem residência em Luanda, de vez em quando vai para Portugal e agora vai viver em Berlim. Bom, todos os artistas que participam do disco são pessoas queridas, amigas, eu tenho admiração especial pela pessoa e pelo artista. Eu identifico no pensamento deles, não só uma grandeza artística por si só, mas, mais do que isso, eu identifico neles uma tendência a fazer uso de sua arte para repensar o mundo. Eles têm essa questão. O idioma das suas obras de arte tem essa característica, de fazer uma crítica e uma sugestão de transformação.

 

– Você tem formação acadêmica em música. Como isso te ajuda na hora de elaborar um trabalho na música popular?

Eu acho que, num contexto de disputa historiográfica, é preciso repensar os limites do que essa terminologia eurocentrada nos oferece, no sentido de colocar uma limitação entre o que é popular e erudito. Mesmo na Europa, a ideia de música de concerto vem sendo questionada, muito do que é feito hoje em dia neste âmbito da música, vem sendo feito fora do que se entende como “música de concerto”, se expandindo para outros espaços, definições e mentalidades. De alguma forma eu sinto que o Brasil, nesse processo de repensar o significado de sua história – do que aconteceu de verdade aqui, no que a colonização interferiu no “saber-se quem é”, é preciso que esse país se comprometa a reelaborar, num sentido cultural, estas barreiras que foram colocadas aqui, que explicam muito mais um olhar branco-centrado, que impedem que o Brasil tenha um aprofundamento sobre aquilo que é. É muito difícil pensar em “música popular” quando temos figuras como Guinga, Tom Jobim, Hermeto Pascoal, Egberto Gismonti, Gilberto Gil, enfim, são tantas figuras que estão impedindo a existência de uma fronteira entre popular e erudito, que eu também fico tentando me localizar nesse lugar. É um lugar que expande essa tentativa limitadora de compreensão da música.

 

– Dá pra destacar influências e inspirações na feitura do “Nações, Homens ou Leões”?

Quando eu comecei a escrever as canções do disco, eu tava ouvindo muito do que a música contemporânea pop negra vem produzindo no mundo todo. É uma música híbrida, eletrônica, dentro da tendência pop contemporânea. Quando eu cheguei em Portugal, junto com amigos que são colecionadores, eu me peguei ouvindo coisas muito diversas, que me fizeram pensar no significado do que é canção, coisas assim. Eu ouvi, por exemplo, o disco de um artista italiano muito interessante, chamado Raul Lovisoni, cujo disco “Prati Bagnati Del Monte Analogo”, de 2018. De fato eu acho que a constelação que influenciou a produção desse disco é uma constelação diversa.

 

– O disco fala muito sobre o fim do mundo, mas não necessariamente o fim do planeta, mas o fim de parâmetros, épocas e conceitos. Como você enxerga a convivência desses vários fins?

De fato, o disco fala a respeito do fim de um mundo, mas não do fim do mundo. Olha, eu acho que esse é um tema muito novo, não sei se saberia te dizer como eu convivo com isso, como eu percebo isso. Se tem algo profundamente recente é o soar desse alarme. A minha geração – eu sou de 1987 – é uma geração que foi criada para viver as benesses da social-democracia, no sentido de que era imaginado para a nossa geração, chegar aos 30 anos e ter uma estabilidade econômica, uma sociedade avançada na sua trajetória de bem-estar social. E fica bastante evidente que nada disso aconteceu ou acontecerá. O planeta vive uma reorganização de propósitos. A maneira como eu enxergo isso é uma tentativa de abertura, não de resistência. Eu quero absorver formas novas de viver aqui na Terra, por mais que elas signifiquem uma caminhada em direção a uma ancestralidade, como se elas pudessem nos fornecer uma existência em coadunação pacífica com o planeta. Deixar de ser adversário do planeta, como o capitalismo nos coloca.

 

– Você é um compositor que tem canções gravadas por grande nomes da M}PB – Gal, Bethânia, Lenine – quem você gostaria que gravasse uma obra sua e por quê?

Eu tenho uma carreira jovem, apenas oito anos, e tive essa grande honra de ter canções minhas presentes em mais de cinquenta discos e já ter sido gravado por artistas como Bethania, Gal, Zezé (Motta, né? Não Zezé Di Camargo – risos). Eu acho que gostaria de seguir esse movimento, que tem sido muito natural na minha carreira, de ser gravado por artistas muito diversos, mas, agora que você perguntou, eu penso – e é curioso, porque tivemos recentemente as piores notícias dela – que eu adoraria ser gravado pela Nana Caymmi.

 

– Como é o cotidiano de um artista de música vivendo de música no Brasil atual? Como é possível seguir adiante?

O lançamento desse meu disco tem sido muito particular, como eu disse antes. O processo e a velocidade dele tem sido muito mais lentos e isso tem gerado uma consternação em mim. O cenário da música no mundo é de grandes mudanças, eu fico olhando pra minha história, tentando me nutrir e me felicitar pelo que já fiz, acreditando que eu vou seguir de alguma forma. Mas eu não escondo a minha frustração em relação a tudo, com o que aconteceu com o Brasil, tenho a impressão que o mercado da música foi sequestrado por grupos específicos, que vêm precarizando o cenário da música – especificamente sobre as plataformas de streaming e redes sociais – mas os artistas não estão aptos, como grupo, a fazerem uma crítica mais dura ao funcionamento dessas grandes corporações, ao sequestro que elas fizeram, que nos prende a este cenário transnacional. Eu fico frustrado mas me sinto impelido a buscar a saída e digo que “há de haver a saída”, na minha canção “Quem Vai Sonhar O Sonho”.

 

– Pergunta clichê mas sempre divertida: sua casa pegando fogo e você pode salvar cinco discos, quais vc salva?

João Gilberto – João (1991)
Milton – Geraes
Gil ao vivo (74)
Livro do Caetano
You Must Believe in Spring do Bill Evans

Falei os cinco que vieram na minha cabeça primeiro.

 

 

CEL

Carlos Eduardo Lima (CEL) é doutorando em História Social, jornalista especializado em cultura pop e editor-chefe da Célula Pop. Como crítico musical há mais de 20 anos, já trabalhou para o site Monkeybuzz e as revistas Rolling Stone Brasil e Rock Press. Acha que o mundo acabou no início dos anos 90, mas agora sabe que poucos e bons notaram. Ainda acredita que cacetadas da vida são essenciais para a produção da arte.

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