Reouvindo “Inútil” à luz da História

 

 

O primeiro disco do Ultraje A Rigor, “Nós Vamos Invadir Sua Praia”, foi lançado em julho de 1985 com grande impacto nas rádios daquele tempo. Ainda que o álbum fosse emplacar vários hits, gerando até clipe no Fantástico – para a faixa-título – o debut do grupo paulista já fora precedido pelo sucesso de uma canção: “Inútil”. Lançada como compacto em 1983, ela foi uma espécie de hino encampado pelo movimento das Diretas Já, no fim de 1984. Além disso, no primeiro Rock In Rio, realizado às vésperas da votação do Congresso que empossou Tancredo Neves como o primeiro presidente do país após vários generais ocuparem a função, Herbert Vianna, dos Paralamas do Sucesso, lamentou a ausência do Ultraje entre as bandas nacionais escolhidas para tocar no festival e mandou uma versão de “Inútil”. Reconhecido como um dos discos mais importantes do rock nacional oitentista, “Nós Vamos…” chegou a ser eleito como o MAIS IMPORTANTE DISCO DE ROCK NACIONAL pela Revista Zero, em 2006, numa prova cabal da volatilidade das listas de melhores e como este tipo de texto é vitimado pela ação implacável do tempo. Não só as listas, mas o próprio álbum. Ademais, com o passar dos anos, é possível dizer que “Inútil” talvez nunca tenha sido uma canção sobre eleições diretas para presidente, mas uma crítica lamentável ao povo brasileiro. E ponto.

 

Roger Moreira, o líder do grupo e autor da canção, foi uma das figuras adjacentes do rock nacional ainda na década de 1980. O Ultraje não teve fôlego para ir muito além do segundo disco, “Sexo!”, de 1987 e ele nunca teve a importância ou o talento de Cazuza, Renato Russo ou mesmo de Herbert Vianna, Edgard Scandurra ou algum dos Titãs. O grupo ainda emplacou “Pelado” na trilha sonora de uma novela global das 19h e apareceu no Chacrinha tocando a faixa-título do disco num programa especial … de Carnaval. A aproximação da banda com a irreverência momesca se deu naturalmente, uma vez que as letras do Ultraje vieram com um humor inegável. Ao contrário da Blitz e dos trabalhos iniciais dos Paralamas, por exemplo, o grupo de Roger era versado numa graça mais juvenil, no sentido de não se envergonhar de falar mal das pessoas. Nas canções dos álbuns iniciais, há especial ataque às mulheres – “Zoraide”, “Marylou”, “Ciúme” – além de momentos em que a banda não perdoa o sujeito que tem boa estrutura familiar mas se rebela por algum motivo que vá além disso (“Rebelde Sem Causa”), algo como um primo distante do comunista de I-Phone, e critica a primazia carioca nos primeiros anos de rock nacional oitentista (a faixa-título e “Mim Quer Tocar”). Em outros momentos o grupo funciona bem, caso de “Eu Me Amo” ou “Independente Futebol Clube”, mas a ladainha do Ultraje envelheceu muito, mas muito mal.

 

E por quê?

 

Simples e isso não passa somente pelas declarações que Roger Moreira passou a dar nas redes sociais nos últimos tempos. O som da banda sempre foi simples, se beneficiando das pessoas que acham que “rock é rock mesmo” e que buscam valorizar uma objetividade empobrecida, desprovida de invenção, como algo que seja sinônimo de autenticidade. Longe disso. Os arranjos nunca foram o forte do Ultraje, ficando tal posto reservado para as letras. Em “Sexo!!”, o segundo disco, além de novas incursões pelo machismo (“Sexo”, “Eu Gosto é de Mulher”) há uma canção que ironiza os esforços pessoais – “Terceiro” – que muitos pensam ser “a imagem do brasileiro” que tenta, tenta e não consegue chegar no lugar mais alto do pódio. Na época, com 16 anos, eu adorava a letra, me divertia, ria e, depois de ter meu almoço e meu jantar servidos na casa da minha mãe e dos meus avós, (sendo que, meu avô havia combatido na Segunda Guerra Mundial) eu ia dormir achando que o brasileiro é um merda, não faz nada direito, me separando automaticamente do resto. Assim como, dois anos antes, aos 14,  também pensava que eu não sabia escolher presidente, nem escovar os dentes, sendo visto como indigente pelo gringo. O risco de achar que uma eventual namorada poderia “grudar” em mim e querer minha total atenção, como a “Zoraide” da canção, era real, mas tudo se resolveria quando eu dissesse para ela não me pentelhar. A origem é a mesma: a falta de consideração e empatia com o próximo e não digo isso porque sou uma pessoa desprovida de maldade ou noção da gravidade das coisas. É que determinados assuntos e posturas ficaram terrivelmente lamentáveis/condenáveis com o passar do tempo e ele – o passar do tempo – é a mola-mestra da História. E sob a luz dela resolvi analisar “Inútil”.

 

É uma canção em que a crítica não vale para todos, ainda que Roger cante use o termo “a gente” no início de todas as frases e tal conclusão não pode ser feita com base nas informações disponíveis à época do sucesso da banda ou mesmo nas Diretas. Ali parecia, de fato, que “Inútil” era uma autocrítica, um brado bem humorado, mas que pegava pesado na vulnerabilidade de um país que emergia – ainda não completamente – de uma ditadura civil-militar em que o atrelamento subserviente da economia aos Estados Unidos fora total, que a opressão do povo fora imensa. Afinal, como se vota pra presidente sem eleições diretas por 20 anos? Como se adquire a experiência para exercer tal direito se ele foi negado?

 

Sendo assim, ainda que parecesse “justa” à época, talvez fosse muito forte a sacanagem com o jeito errado de falar, traduzido na expressão “a gente não sabemos”. Trata-se de uma crítica direta a uma ignorância das pessoas mais humildes, que não se traduzia, por exemplo, na classe média-alta da qual Roger fazia parte, tendo estudado em bons colégios de São Paulo, passado algum tempo nos Estados Unidos e sendo, como disse, recentemente, “dono de um enorme Q.I.”. A crítica da canção, inclusive, transcende o âmbito político, atendo-se muito mais a aspectos da vida social.

 

Por ordem são enumeradas instâncias das quais “a gente não sabemos”:

– Escolher presidente

– Tomar conta da gente

– Escovar os dentes

 

A partir daqui, Roger passa a falar certo e o plano muda das pessoas para uma “administração pública” ou algo assim.

– Faz carro e não sabe guiar

– Faz trilho e não tem trem pra botar

– Faz filho e não consegue criar

– Pede grana e não consegue pagar

 

E aqui, terminando a canção, vêm outros pontos, mais próximos da cultura/desporto.

– Faz música e não consegue gravar

– Escreve livro e não consegue publicar

– Escreve peça e não consegue encenar

– Joga bola e não consegue ganhar

O resultado disso é: gringos pensando que somos indigentes.

 

Em todos os aspectos, no entanto, há uma constante: uma suposta incapacidade do Brasil e seu povo em, segundo os parâmetros do autor, serem bem sucedidos. O que nos leva a pensar que o oposto das afirmações da letra significariam as indicações de êxito. Saber falar certo seria a primeira delas, o que nos leva a ter certeza que a canção despreza quem não consiga tal virtude. Segundo dados do IBGE, tínhamos 22% de analfabetos em 1983, sendo que o número subia para 41,5% no campo, em média. É importante dizer que o país vinha de 21 anos de regime de exceção, no qual houve danos terríveis à economia, com um enorme aumento da concentração de riquezas, gerando uma desigualdade crescente e, em muitos casos, levando algumas regiões à miséria e à fome. Uma sociedade desigual gera resultados desiguais nos diferentes meios de aferição. Claro que tal ponderação nem poderia caber numa canção pop, nem Roger deveria saber de indicadores do IBGE para referendar sua crítica em 1983. Certo? Talvez.

 

Porém, com o passar do tempo, vimos que ele passou a usar as redes sociais para divulgar e expressar, dentro da boa prática da democracia e da liberdade de expressão, suas opiniões. E daí passamos a ver que o suposto letrista simpático e “brincalhão” de antes dera lugar a uma pessoa com falas duras e imprecisas, para dizer o mínimo. Como simpatizante explícito do atual governo, Roger não parece mais prezar por estes valores e me pergunto se já o fez algum dia. Veja o que poderia combinar com a letra de “Inútil”, baseado no posicionamento recente do autor:

 

– “As alterações na declaração de flavio bolsonaro são fruto de parcelamento de imóvel, apenas isso”

 

– Sobre a popularidade de Lula no Nordeste: “Daí você diz que é devido ao alto número de ignorantes do Nordeste (comprovado) e detona o mimimi”

 

– Sobre livro que conta a história de crianças presas pela ditadura civil-militar: “A culpa é dos pais dessas crianças. Foram presos por conspirarem contra o Brasil. Pensaram nas crianças ao se envolverem?”

 

– Após o Brasil ser desclassificado da Copa de 2006, ele escreveu uma marchinha chamada “PQP Brasil”, disponibilizada na Internet à época.

“Brasil, meu coração/ Pena que só tem ladrão/ Mas tem a Seleção/ Nosso orgulho e paixão/ Se o resto da nação/ merecesse a mesma atenção/ Daí sim, daí sim/ a gente ia ser campeão”.

 

– Atacou a jornalista Astrid Fontenelle, após ser mencionado no programa “Saia Justa”, do GNT.

 

Mais recentemente, Roger foi visto respondendo pesadamente a Edgard Scandurra após este ter respondido a pergunta feita pelo jornalista Ricardo Schott em seu site, Pop Fantasma:

 

Você tocou no Ultraje A Rigor no começo da banda, por sinal. Você e o Roger ainda se falam?

Não, a gente não se fala. A última coisa que eu soube dele foi que ele estava desse outro lado. Eu não só toquei no Ultraje como dei o nome para a banda! Lembro de falar para ele: “Pô, Roger, toca as suas músicas! Não fica tocando Beatles e Stones para sempre. Você é talentoso, tem músicas legais”. Isso lá em 1982, 1983, a banda era de covers. Nessa época ninguém discutia opção política de ninguém. Essa coisa de polarização política rola de uns oito anos para cá. Nos anos 1980, acho que nunca parei e perguntei para ninguém: “Em quem você votou?”. Hoje é que pequenas diferenças são gritantes.

 

E a resposta veio desse jeito:

 

Estas falas de Roger, fruto do tempo, que revela e aclara detalhes e aspectos, complementam a crítica expressa em “Inútil”. Se havia alguma boa intenção naquela letra, tais palavras não mais significam alguém irritado porque o país, após 21 anos, não consegue aprovar a eleição direta para presidente. Não lamentam as desigualdades ou o infortúnio nacional da época. Ao celebrar e achar justo o infortúnio de 2020, ao referendar os absurdos de 2018, embasar o disparate de 2016, Roger estava, em 1983, culpando os mais pobres e as desigualdades eventuais – não mapeadas em sua análise -, olhando apenas para seu mundo, aproveitando sua colcha de privilégios. Inútil.

CEL

Carlos Eduardo Lima (CEL) é doutorando em História Social, jornalista especializado em cultura pop e editor-chefe da Célula Pop. Como crítico musical há mais de 20 anos, já trabalhou para o site Monkeybuzz e as revistas Rolling Stone Brasil e Rock Press. Acha que o mundo acabou no início dos anos 90, mas agora sabe que poucos e bons notaram. Ainda acredita que cacetadas da vida são essenciais para a produção da arte.

4 thoughts on “Reouvindo “Inútil” à luz da História

  • 15 de setembro de 2020 em 15:04
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    Excelente análise! O que dizer de um “artista de alto QI” se restringir ao papel de banda de auditório de um programa de Danilo Gentili? Inútil, mesmo! Apesar de gostar do som e da qualidade dos músicos, outra banda que não resiste á análise do tempo é o Charlie Brown Jr! Quanto machismo!

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    • 15 de setembro de 2020 em 15:33
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      Exato. E olha que a análise ao Ultraje quase limitou-se a “Inútil”. Se passar o pente fino em praticamente todas as canções do grupo, sobra nada. Obrigado pela resposta!

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  • 15 de setembro de 2020 em 11:28
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    Noooossa!!! Ótima tese, excelente dissertação, dá um grande debate. Como eu estava lá, discordo da opinião sobre “Inútil” à época.
    Mas… mas… se você falar mal da “Pro dia nascer feliz” e seu significado no show do Barão Vermelho de 15 de janeiro de 1985, nós vamos brigar feio!!!
    No mais, esse Roger aí e mais uma pá viraram (ou sempre foram) uns babacas!!!
    Aliás, nos anos 80, uma época esquisitíssima, apesar de sermos taxados de alienados, onde o rock nacional (não gosto de BRock) seria uma moda de verão, havia um inimigo comum e isso nunca significou que todos pensassem de forma igual.
    Aliás, nem hoje, nem quando tinha 14 anos nunca fui contra a propriedade privada, as classes sociais e o Estado. Com certeza nem os nossos “roqueiros” mais famosos!!!!

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    • 15 de setembro de 2020 em 11:44
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      Sim, a questão aqui é, justamente, separar a canção do aspecto de “hino democrático”. Ela foi adotada naquele tempo, sim. Precisamos separar as coisas e só com o tempo e a análise histórica isso foi possível. 🙂

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