A batida perfeita do pós-punk
Como evidenciar as inovações do pós-punk em relação ao punk? Uma das formas de fazer isso é apontar para a valorização da “cozinha” de baixo-bateria no pós-punk. Baixo-bateria eram essenciais, claro, no punk, mas basicamente como acompanhamentos da guitarra. O punk reivindicava um som básico, e nisso havia algo de buscar no bom e já velho rock’n’roll as inspirações e princípios. Assim se contornava os floreios que o rock ganhara com o psicodelismo e o progressivo. Já o pós-punk, partindo do corte (com gilete) operado pelo punk, queria olhar para frente, sem deixar de garimpar o passado. Parte de sua inovação estava exatamente em destronar a guitarra e abrir espaço para outros ingredientes.
Nesse deslocamento havia uma dimensão política. Afinal, destronar a guitarra significava horizontalizar a elaboração da música. Direitos iguais para todos os instrumentos. Em outro plano, devemos notar o impacto de sonoridades negras. A valorização de baixo-bateria tinha como uma de suas inspirações o reggae. A viagem de John Lydon para a Jamaica logo após o fim do Sex Pistols é emblemática, tanto quanto o avanço do Clash após o terceiro álbum em direção de ritmos negros. Estava em cena mais um capítulo das tensões (e combinações) raciais que percorrem a história do rock.
Dos novos ingredientes abrigados pelo pós-punk, quero tratar aqui especificamente da bateria. No punk, a bateria, geralmente vigorosa, oscilava entre o acompanhamento e as viradas pontuais. Na alternativa pós-punk, um caminho foi o minimalismo, deixando a bateria como um marcador. Isso correspondia a uma busca de economia, uma certa limpeza no som. Outro caminho foi a transformação da bateria em um instrumento carregado de criatividade. Nos dois casos, substituía-se as oscilações do punk por uma constância, uma regularidade, fosse ela contida, fosse ela elaborada. Essa elaboração foi o resultado de uma procura pela batida perfeita.
Aproveitando que John Lydon já foi citado, tomemos o PIL como ilustração. O reggae era uma predileção não apenas do antigo vocalista do Sex Pistols. Jah Wobble, baixista do PIL, era um aficionado e suas vibrações definiram muito do que a banda fez em seus dois primeiros discos. Mas a bateria só vai ganhar destaque no álbum seguinte, Flowers of Romance, gravado em 1980. Em parte, por motivos casuais, como a saída de Jah e um certo esgotamento da guitarra de Levene. Desse modo, a situação foi propícia para Martin Atkins inovar com batidas quebradas e inusuais, que sustentam boa parte das músicas do álbum. Escute “Four Enclosed Walls”, faixa de abertura, para entender do que se trata e perceber o mesmo em várias outras faixas.
Buscar andamentos mais complexos, perseguir batidas quebradas, que no entanto se mantêm ao logo de toda a música – esse era o conceito, ou o resultado. Percussões tribais, baseadas no uso dos tom-tons (os tambores menos agudos da bateria), ganham espaço para inovar em relação ao acompanhamento feito com o surdo (o tambor mais grave) e a caixa (o tambor mais agudo) que foi amplamente explorado no punk.
Budgie, baterista da Siouxsie and the Banshees, é outro exemplo. Membro da banda desde seu terceiro álbum, é no quarto, Juju, de 1981, que seu estilo vai se destacar. Ao tentarem gravar uma das faixas, ele e Siouxsie (que se tornariam um casal) perceberam que podiam fazê-las apenas com bateria e voz. Isso propiciou um projeto paralelo, Creatures, que no mesmo ano lançou um álbum com cinco músicas. Escutem no que se transformou o clássico “Wild Thing” dos Troggs.
Vale também mencionar The Cure na época em que grava o álbum Pornography, lançado em 1982. A menção pode levantar ressalvas, já que a bateria soa como se fosse eletrônica. Mesmo assim, o resultado vai na direção do que foi apontado acima quando escutamos as faixas “Siamese Twins”, que alia simplicidade e criatividade, e “The Hanging Garden”, toda levada com tom-tons. “The Walk”, lançada no ano seguinte, é uma ótima música por conta, entre outras coisas, de sua batida. As duas últimas músicas foram incluídas no álbum ao vivo Concert, de 1984, e mostram todo o seu peso ao serem executadas por Andy Anderson.
Proponho, enfim, que voltemos no tempo para nos deparara com um dos primeiros exemplos da batida perfeita no pós-punk. A banda é Joy Division. Em seu primeiro álbum, Unknown Pleasures, de 1979, a guitarra de Bernard Sumner tem um destaque que revela as raízes punk do quarteto. Mas vale lembrar que uma das suas faixas, “Interzone”, surgiu a partir de uma música do northern soul britânico que foi mostrada aos rockeiros – o que evidencia uma insuspeita influência negra. De todo modo, é em canções posteriores que o gênio de Stephen Morris vai despontar.
“Transmission” é um bom exemplo, com sua original combinação de chimbau, caixa e tom-tom. Há nessa batida uma pista que vai desabrochar em “Ceremony”, uma das derradeiras da banda, passando por “Love will Tear us Apart”, a mais conhecida do Joy Division. Já “Atmosphere”, uma música sem guitarra, mostra o que Morris sabia fazer apenas com tom-tons.
Closer, álbum de 1980, é paradigmático quando se trata da percussão pós-punk. Em várias faixas, temos a economia minimalista, que aponta para o uso da bateria eletrônica que se tornaria comum na banda em que o Joy Division se tornaria, New Order. Em outras, encontramos batidas perfeitas, impressionantes por sua inventividade. “Colony” está entre elas, Morris alternando entre tom-tons, caixa e chimbal em perfeita companhia com a guitarra e o baixo. Em “Twenty Four Hours“, na sua parte mais lenta, a conversa é com o baixo, um diálogo poucas vez igualado, capaz de destacar o trabalho não menos criativo de Peter Hook nas cordas. Já em “Atrocity Exhibition”, é a batida tribal que constitui o tronco da música, deixando espaço para o baixo e a guitarra se expressarem e sustentando as palavras de Ian Curtis.
Se não houvesse outros motivos, as batidas perfeitas de Stephen Morris já seriam razão suficiente para celebrarmos os 40 anos de Closer.
Para Biba Meira, baterista da DeFalla, que muitas vezes encontrou a batida perfeita
Links:
“Atrocity Exhibition”, Joy Division
Emerson G curte ler e escrever sobre música, especialmente rock. Sua formação é em antropologia embalada por “bons sons”, para citar o reverendo Fábio Massari. Outra citação que assina embaixo: “sem música, a vida seria um erro” (F. Nietzsche).