A agridoçura musical de Píncaro

 

 

Píncaro – Um Delírio Madrepérola

Gênero: Folk alternativo

Duração: 30 min.
Faixas: 10
Produção: Mauro Motoki
Gravadora: Independente

4 out of 5 stars (4 / 5)

 

 

Tive o privilégio de conviver virtualmente com Roger Valença, o Píncaro propriamente dito. Foi quando colaborei com o Monkeybuzz, site vitorioso da cena alternativa nacional, no qual ele, além de um timaço de jornalistas e amigos, escrevia. De um tempo em diante, Roger se incumbiu de fazer comunicações mais diretas comigo, com a missão de fornecer feedback sobre os textos e dar toques e sugerir novas abordagens. Era uma espécie de ombudsman sutil e produtivo, coisa séria e rara. E eu nem imaginava que ele tinha uma carreira musical, marcada, especialmente por sua participação na banda paulistana Onagra Claudique. E que tem continuidade agora, com a chegada deste seu primeiro trabalho solo, “Um Delírio Madrepérola”. Que disco bonito, gente.

 

Bonito porque tem uma delicadeza que se constitui como sua maior arma, sua maior e mais virtuosa força. É como se Roger te obrigasse a enxergar o mundo e as coisas com esta perspectiva de contemplação, doçura e gentileza. Não vá confundir isso com bundamolice ou algo assim, a música de Píncaro é fortíssima, quase contundente. O release diz que o disco é inspirado em episódio da infância do artista, algo que, de alguma forma, a gente percebe porque é nela, na infância, que a gente se torna quem somos pelo resto da vida. Traumas e felicidades vivenciados há décadas ainda servem como nossas balizas para a vida adulta e devem nos acompanhar até o último momento por aqui. A música de Píncaro pede licença para adentrar esse terreno onírico, volátil, porém inevitável e se aconchega em regiões da alma que nem imaginávamos existir. É tudo muito sutil, delicada e terrivelmente sutil. Como a citação da melodia de Carlos Gomes em “O Guarani”, não o original, da Voz do Brasil, mas do próprio Píncaro. E por aí vai.

 

A produção de Mauro Motoki, ex-Ludov, dá esse ar cinematográfico de inconsciente coletivo. É um acesso a memórias compartilhadas de outros tempos, de outros carros nas ruas, de outras ruas, de árvores, cheiros e gostos que se foram. Mas que, de alguma forma, ainda estão aqui. Mexer com esse acervo é algo que deve ser feito com muito cuidado e o disco exibe essa manha. A sonoridade é totalmente acústica, cheia de violões, vocais de apoio – a cargo de Mariana Poppovic – e pequenas pistas eletrônicas muito sutis e raras. Tudo é feito com a intenção de tirar o ouvinte do plano normal e fazê-lo caminhar por essas ruas desertas.

 

A música, definida como “campestre” pelo próprio Roger, é acústica. Suas letras têm a missão de completar a condução do ouvinte. Em “Lençóis de Algodão”, o primeiro single, ele vai repetindo a mesma estrutura lírica com alterações marcantes, mas que podem parecer pequenos detalhes. A lógica é essa, a de esconder terras e mares sob a manta de delicadas tapeçarias de violões e timbres. No fim, faixas como “Leito de Migalhas”, “O Guarani” e “Carne Mármore” se inserem no ról das pequenas-grandes canções confessionais dessa novíssima música brasileira que deveria ser muito mais conhecida do que é.

 

“Um Delírio Madrepérola” é um disco lindo, cheio de agridoçura verdadeira. Vai te sequestrar e te devolver diferente, meia hora depois. Aceite e vá na fé.

 

Ouça primeiro: “O Guarani”, “Carne Mármore”, “Leito de Migalhas”

 

CEL

Carlos Eduardo Lima (CEL) é doutorando em História Social, jornalista especializado em cultura pop e editor-chefe da Célula Pop. Como crítico musical há mais de 20 anos, já trabalhou para o site Monkeybuzz e as revistas Rolling Stone Brasil e Rock Press. Acha que o mundo acabou no início dos anos 90, mas agora sabe que poucos e bons notaram. Ainda acredita que cacetadas da vida são essenciais para a produção da arte.

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