A estreia do New Order e seu “patinho feio”

 

Estou entre as pessoas que teve contato com Movement apenas quando ele saiu no Brasil, nove anos depois de seu lançamento original. Àquela altura, 1991, a New Order já somara outros quatro álbuns ao seu currículo, além de vários singles, boa parte dos quais compilada em Substance, também disponível no Brasil.

 

Lembro que a sensação foi de estranhamento, pois o New Order de 1981 soava bem diferente da banda que eu conhecia por meio dos outros álbuns. Por muito tempo, minha relação com Movement foi parecida com a da própria banda, que preferiu manter distância de seu rebento. Nem seu repertório, nem seu processo de gravação suscitavam sentimentos positivos.

 

 

Em suma: tanto para a banda quanto para a maioria dos fãs e seguidores, Movement estaria no final da lista dos “melhores álbuns” da New Order. Diante da evolução do quarteto, seria lembrado apenas pelo que anuncia acerca do que viria depois.

 

Na época do lançamento de Movement, a crítica musical tampouco se animou. A razão, nesse caso, claro, não poderia ser o que viria depois, mas o que existia antes. Nesse caso, a Joy Division, que com apenas dois álbuns e um alguns singles havia conquistado enorme aclamação e estabelecido referências para outras bandas.

 

Não custa lembrar: a New Order foi o nome assumido pelo trio remanescente da composição da Joy Division, que encerrara sua carreira com a morte do vocalista Ian Curtis em maio de 1980. No finalzinho de julho ocorre o primeiro show de Bernard Sumner, Peter Hook e Stephen Morris. Com a ajuda da turma da Factory Records, a banda seguiu adiante, com a decisão de não incluir músicas da Joy Division no repertório de seus shows.

 

Mas ainda em 1981 a Joy Division assombrava a New Order com o lançamento de Still, álbum que compila gravações não incluídas nos dois álbuns anteriores e registra o último show com Ian Curtis. E o primeiro single da New Order, de março daquele ano, trazia duas músicas da Joy Division, “Ceremony” e “In a Lonely Place”, parte de suas últimas composições e por essa razão assumidas pelo trio remanescente.

 

Outro legado era Martin Hannet, responsável pela produção das músicas da Joy Division. Ele continuaria acompanhando a nova banda. Seu estilo “eu-é-que-decido-tudo”, no entanto, passou a ser uma fonte de atritos. Além disso, Hannet estava com problemas com a Factory e a relação com algumas drogas andava além de seu controle. Seria seu derradeiro trabalho com a New Order e a banda prefere lembrar dele com momentos que não incluem a produção de Movement.

 

Vamos então parar por aqui?

 

Nada disso. Sigamos, tentando encontrar nesse “patinho feio” e nas coisas ao seu redor algo interessante. Mas é importante lembrar que desde outubro de 1980, o trio se tornara um quarteto, com o ingresso de Gillian Gilbert, algo que merecerá um comentário adiante.

 

Comecemos, no entanto, pelas oito faixas do álbum, afinal é disso que se trata. Se prestarmos atenção, deixando de ver Movement como uma decepção diante do que fora a Joy Division ou como mero prenúncio do que viria a ser a New Order, o saldo pode ser positivo.

 

O álbum abre com “Dreams Never End”. Sua introdução impressiona, com o jogo de guitarra e baixo em crescendo juntamente com a bateria. Diante disso, o restante da música decepciona, algo monótona, sem dar destaque mesmo aos riffs de Sumner. Como se um supersônico após decolar passasse a voar feito um teco-teco. A faixa contrasta com as demais, pois é a única do álbum sem componentes eletrônicos.

 

“Truth”, por sua vez, é o oposto. Na parte percussiva, é justamente a única totalmente eletrônica, algo inédito na composição de Morris. Também inédito é o recurso a uma escaleta, assumida por Sumner para fazer uma linha retomada no teclado de Gilbert. Como sabemos que “Dreams Never End” e “Truth” fazem parte da primeira leva de novas músicas, fica logo evidenciada a versatilidade da banda.

 

“Senses” vem marcada pela percussão de Morris. O vocal é acompanhado por uma levada tribal; nas demais partes, o baterista usa pads para produzir sons industriais. A guitarra de Sumner impõe-se, em um diálogo nada previsível com os demais instrumentos.

 

“Chosen Time” apresenta a banda fazendo algo que não é anunciado em nenhuma das faixas anteriores. A bateria mantém-se regular em um suingue dançante, acompanhado pelo teclado. Mas a engenhosa linha de baixo de Hook é super rápida. Em cima disso tudo, uma guitarra entre o funk e o rock, mostrando porque a New Order merece fazer parte do panteão do pós-punk.

 

“ICB” tem novamente uma levada tribal, mas com inserções que lhe dão desde o início um toque eletrônico, provavelmente uma contribuição de Martin Hannet a demonstrar que seu papel não deixou de ser positivo. Novamente a guitarra paira com suas evoluções sobre a base de baixo e bateria. O andamento caminha em direção a uma sonoridade quase new wave.

 

“The Him” mostra novamente as habilidades de Morris, que carrega a música com seus tambores. Os demais instrumentos conferem um tom grave à melodia, lembrando suas origens na Joy Division. De repente, a música explode com a banda compondo uma levada marcial.

 

“Doubts Even Here” mantém o clima grave. Assim como em “Dreams Never End”, o vocal principal é assumido por Hook, aqui com melhores resultados. A bateria tribal alia-se ao teclado, enquanto baixo e bateria entabulam outra linha que confere dinâmica à música.

 

“Denial” destaca mais uma vez a bateria de Morris (curiosidade: uma levada que foi sampleada em “Dentes da Frente”, faixa do álbum de Toni Platão, Calígula FreeJack, 2000), tambores à frente, intercalados por um repique de caixa que contribui para construir uma música nervosa. Ela vai em um crescendo em que se juntam todos os instrumentos e a voz de Sumner cantando sobre sua alma.

 

Segundo o guitarrista, as letras da época de Movement eram “qualquer coisa”. Os temas que nelas aparecem expõem inseguranças e frustrações, coisas que marcavam também as letras da Joy Division, mas sem o rebuscamento literário de Ian Curtis. De todo modo, Sumner assumiu os vocais principais, depois que Hook e Morris também foram testados.

 

Ao ingresso de Gillian Gilbert na New Order devemos dar o devido valor. Decidida a fazer música depois de conhecer Siouxsie and the Banshees pela TV, ela fazia parte da The Inadequates, banda que ensaiava perto de onde se reunia a Joy Division. Morris tornou-se seu namorado, ela já havia substituído Sumner em um show, tudo conspirou para sua entrada na New Order.

 

Sua importância não tem a ver apenas com participações na guitarra e no teclado (instrumento que aprendera a manusear recentemente). Sabemos das dificuldades de Sumner em cantar e tocar ao mesmo tempo. Com Gillian na banda, ele pode se aprimorar como vocalista e como instrumentista, e isso contribuiu decisivamente para tornar a New Order diferente da Joy Division.

 

Há exagero ou má vontade em tomar Movement como um mero rescaldo da Joy Division. Evidentemente, há continuidades, mas é possível também destacar os distanciamentos. Se Closer apontava em mais de uma direção, Movement reembaralhava os ingredientes que representavam as contribuições de cada integrante da nova banda.

 

Embora o luto devido a Ian Curtis deixe várias marcas em Movement, ele não impediu que a New Order encarasse os palcos. Após alguns shows em solo britânico, em setembro de 1980 a banda apresenta-se em Nova York e Boston. Em 1981, além de circular pela Europa, voltaria a palcos estadunidenses, dessa vez chegando até a Califórnia.

 

A experiência americana, especialmente a cena novaiorquina, teria impactos decisivos na evolução musical da banda. O tipo de danceteria que eles conheceram nos intervalos dos shows era algo inexistente na Inglaterra (e seria uma inspiração para o Haçienda, clube aberto em 1982 em Manchester). Outro passatempo era ficar escutando rádios como Kiss FM, com programações que alinhavam gêneros musicais compondo uma mistura inédita para os britânicos.

 

Uma e outra coisa expuseram a New Order a novas e decisivas influências, cujo ponto comum era o foco nas pistas de dança. Juntavam-se aí, como comenta Simon Reynolds, pós-disco, Latin freestyle e electro, uma vertente do hip hop muito inspirada em Krafwerk e baseada em drum machines e sintetizadores.

 

Sumner era o mais entusiasmado com tudo isso e aos poucos Morris foi se convencendo de que ali estava uma boa ideia. A eletrônica seria abraçada sem descartar a percussão orgânica e mantendo o destaque às guitarras agressivas e distorcidas. Hook continuaria a desenvolver o timbre que se tornaria sua marca pessoal no baixo. Outra coisa, compartilhada por toda a banda, é que o lado mais grave da Joy Division teria que ser abandonado, para que uma “nova ordem” pudesse se estabelecer.

 

Movement ainda está assombrado por esse lado mais grave. Mas, além de não insistir em fórmulas deixadas pela Joy Division, já traz sinais de outras trilhas. “Chosen Time”, que é da última leva de composições, tem uma levada disco. Contudo, são duas outras músicas, não incluídas em Movement, mas compostas em 1981, que deixam mais evidentes as transformações.

 

A primeira é “Everything’s Gone Green”, lançada primeiro como o lado B do single “Procession” e depois como o lado A de outro single que traz mais duas faixas. Sumner e Morris quebraram a cabeça lidando com um sintetizador barato e uma drum machine para criar a base da música. Hook construiu a melodia no baixo. O resultado é ao mesmo tempo dançante e claustrofóbico.

 

A segunda música é “Temptation”, que seria lançada apenas em 1982, como um single, em duas versões. As bases eletrônicas, a bateria disco, o baixo melodioso e a guitarra funky resultam em algo deliciosamente inefável. A faixa ganharia nova gravação em 1987, com vocais que deixam para trás o timbre robótico original. O vídeo que a acompanha é um must.

 

Tudo isso, claro, apontava na direção que seria atingida por “Blue Monday”, a música que colocaria a New Order nos trilhos do sucesso e do pop. Mas aí já avançamos para 1983, ano do segundo álbum Power, Corruption and Lies. Pessoalmente, em comparação com “Blue Monday”, considero as músicas de 1981, “Everything’s Gone Green” e “Temptation”, e muita coisa de Movement mais interessantes.

 

A banda parece ter se reconciliado, ao menos parcialmente, com Movement ao anunciar o lançamento de uma edição “definitiva” em 2019 (depois da uma primeira remasterização divulgada em 2008). A edição inclui as oito faixas nas versões registradas originalmente no álbum, gravadas no Strawberry Studios, nas cercanias de Manchester, entre abril e maio de 1981. Além delas, apresenta as músicas de duas demo tapes, uma de setembro de 1980 com cinco músicas produzida no estúdio Western Works, na cidade de Sheffield; a outra, de 1981, com nove músicas, quase todas na lista de Movement.

 

Na divulgação dessa edição de 2019, manteve-se a capa desenhada por Peter Saville, que já colaborava com a Joy Division e se manteria ao lado da New Order por muito tempo. Para o álbum de 1981, Saville apropriou-se de um pôster do futurista italiano Fortunato Depero. A nova ordem exigia uma nova estética.

 

O Movement de 2019 traz uma das versões de “Temptation” e inclui duas versões preciosas de “Ceremony”, nenhuma delas a mesma já divulgada em Substance e outras compilações. Uma das versões vem da demo do estúdio Western Works, ainda de 1980. A segunda foi gravada em 1981 e apresentada no single original.

 

Dá para dizer que “Ceremony” foi um presente da Joy Division para a New Order. Sem teclados, sua estrutura tem algo de “Transmission”, single de 1979. Mas ela aponta também para o futuro, com a batida mais marcada, o baixo no estilo singular de Hook, a guitarra compondo uma melodia pop. De todo modo, é difícil descrever a combinação perfeita de seus elementos, sua mistura de energia, delicadeza e melancolia. Continua até hoje sendo uma joia.

 

Emerson G

Emerson G curte ler e escrever sobre música, especialmente rock. Sua formação é em antropologia embalada por “bons sons”, para citar o reverendo Fábio Massari. Outra citação que assina embaixo: “sem música, a vida seria um erro” (F. Nietzsche).

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