O paradoxo da rádio rock

 

 

 

Sábado demos a notícia de que a Cidade FM, emissora carioca que se intitula “rádio rock”, será integrada à Rede Deus É Amor a partir do dia 07 de fevereiro. Ou seja, em menos de uma semana. Ainda que seja a terceira vez que a Cidade sai do dial carioca, a reação é sempre indignada e entristecida. Afinal de contas, como pode uma emissora de rádio, “que toca rock”, não ter audiência? Como pode uma emissora “jovem” não ter público suficiente para mantê-la viável comercialmente e sustentável no ar? Eu respondo, com certa facilidade: porque o modelo de programação da Cidade FM era completamente desconectado da realidade musical atual. Além disso era desvinculado das estratégias de divulgação e propagação de informações sobre música em tempos de streaming e consequente enfraquecimento das gravadoras. E, pra terminar, tal modelo de programação, ainda que, evidentemente melhor que uma programação neopentecostal, é emburrecedor e limitador. É triste, eu sei.

 

Eu deixei de ouvir rádio no início dos anos 1990. Coincidiu com a chegada da MTV ao país. Com uma programação de novidades, a emissora de TV passou a pautar as rádios e ali eu vi que havia algo errado com o rádio nacional. Na verdade, os anos 1980 criaram condições atípicas para o surgimento e propagação do rock nacional e isso, claro, respingou nas rádios. As emissoras e redes cresceram, mas poucas eram atentas para o que trazia novidade de fato. Aqui no Rio, apenas alguns programas da Fluminense FM cumpriam a função de mostrar tais bandas e artistas. Lembrem-se: em 1987, o The Cure veio ao Brasil pela primeira vez e lotou duas noites no Maracanazinho. Seu surgimento como banda conhecida no país se deu meros três anos antes, via programadores abnegados e pioneiros, como Mauricio Valladares ou Kid Vinil. Sem eles, quem teria o peito de tocar a banda de Bob Smith por aqui? Complicado. E, na esteira do Cure, vieram Echo And The Bunnymen, New Order, Siouxsie And The Banshees, ou seja, artistas novos, que oxigenaram a cena dominada por Dire Straits e similares. Sem o novo, gente, a coisa não avança.

 

E novo, hoje em dia, está em entender que os tempos mudaram. Não dá pra fazer rádio rock, primeiro porque, o rock, como o conhecíamos, acabou. Hoje estamos décadas à frente, num presente estranho. A sociedade, sabemos, produz cultura que reflete sobre tais agruras como arte, então temos livros, filmes, peças e música que falam o tempo todo sobre este momento. Não dá pra falar o tempo todo – a menos que seja intencional – de arte que já aconteceu. Aplicando este modelo à rádio rock, não dá pra, em pleno 2021, pandemia instalada, bolsonaro no poder, iminência de 63 milhões a mais na linha da pobreza por conta do fim do auxílio emergencial, tocar Def Leppard em 1987 ou Beatles em 1969. Quem vai se interessar por isso? A menos que seja uma programação assumidamente revisionista, não faz sentido vender esta atitude como atual, certo?

 

Daí virá alguém questionando e argumentando que a boa música, a boa arte, é eterna. Sim, claro, mas consumir apenas o que se supõe eterno nos desconecta da realidade e nos faz habitar um paradoxo temporal. Ou seja, o mundo não parou. Mas a música que eu ouço, sim. Não funciona, a conta não fecha. E este é o problema central das rádios rock, tratar o estilo como atemporal, sendo que, sim, ele já passou. A menos que renasça em condições históricas próprias, o rock é música de um tempo que já não mais existe. Me refiro ao rock que as rádios que levam o estilo no nome veiculam. Porque há inúmeras bandas e artistas ao redor do mundo, produzindo compulsivamente e lançando músicas, EPs, discos, misturando, ressignificando, criando novas formas. O rock vive, mas com outros pés, outros rostos, sinal inegável de evolução. Seria alarmante que todos os artistas do rock fossem, por exemplo, como o Greta Van Fleet, grupo americano que “revisita” com afinco o Led Zeppelin. Ainda que a falta de originalidade seja a principal característica da banda, os fãs não se importam. Pelo contrário.

 

O fã de rock que não entende os tempos atuais está condenado a vagar num limbo existencial. E quem reproduz esta visão, também está. Por isso não espanta que a Cidade FM novamente suma do dial. Ouvi sua programação hoje pela manhã e, dentre 18 músicas tocadas, APENAS CINCO ERAM … DA ÚLTIMA DÉCADA, sendo que, uma delas, é uma versão do original lançado em … 1984. Isso corresponde a menos de 30 por cento. E deste mesmo universo, oito canções eram anteriores ao ano 2000. Quase 40% do total. Apenas uma era lançamento, neste caso, o último single do veterano grupo paulista CPM22. Por fim, a pior estatística: apenas três faixas nacionais. TRÊS. Menos de 20 por cento. Nenhuma música atual, apenas bandas conhecidas, medalhões. Apenas o óbvio. Apenas o desnecessário.

 

É claro que uma rádio que só tocasse novidade seria um projeto arriscadíssimo. Mesmo que investisse em veicular bandas e artistas conhecidos, mas optando por canções menos conhecidas, seria impossível prever o sucesso. O que fazer, então? Em primeiro lugar, é necessário parar, imediatamente, de usar o termo “rádio rock”, que significa um outro tempo e lugar, que se foram. Além disso, é imperativo abrir espaço para a produção de gente nova, não só para manter o estilo oxigenado e interessante, como para dar espaço para um novo público se engajar, um público que seja fiel e animado. É necessário também interagir com essas pessoas, abrir espaços, chamá-las para participar, trazê-las para perto do projeto. Libertar-se do formato velho de gravadoras/jabá/medalhões também é algo que precisa ser feito. O público se interessa por coisas novas, achar que eles só querem o óbvio é desmerecer seu bom senso. E, pra ontem, é necessário gente que esteja conectada com o que está acontecendo agora, aqui e lá fora. Gente que apresente bandas, artistas, fale a respeito. Tem que ter podcasts, tem que ter jornalismo especializado no assunto e, claro, tem que ter viabilidade econômica.

 

Não adianta defender o modelo encarquilhado de emissoras como a Cidade como “viável” porque, pela terceira vez, ele foi pro espaço. Precisamos de criatividade.

 

Há muita gente querendo se libertar dos enclaves da grande mídia na Internet. É preciso dar espaço para os independentes, enxergá-los como portadores de uma modernidade necessária, investir neles, abrir espaços e deixá-los agir. Do contrário, seguiremos perdendo espaço para quem está do lado da opressão e acredita que cabelo comprido é contra as leis divinas. Sim, essa gente existe e pode estar ao lado agora mesmo.

 

Abaixo estão as músicas que ouvi na Cidade FM do Rio nesta manhã de segunda, dia 01 de fevereiro de 2021.

 

 

– Come Together – Beatles (1969)
– Skin And Bones – Foo Fighters (2006)
– Soldados – Legião Urbana (1984)
– Lisztomania – Phoenix (2009)

– Boletim do trânsito

– Mardy Bum – Arctic Monkeys (2006)
– Forever – Kiss (1990)

– Boletim das ondas com Rico de Souza

– Pour Some Sugar On Me – Def Leppard (1987)
– QUANDO – CPM 22 (2021)

– Panorama do Rio – noticiário

– How You Remind Me – Nickelback (2001)

– Boletim informativo

– Wandering Star – Noel Gallgher’s High Flying Birds (2019)
– Somebody Told Me – Killers (2004)

– Boletim de Saúde com Cynthia Howlett

– Let Her Go – Passenger (2012)
– Envelheço na Cidade – Ira! (1986)
– We’re Not Gonna Take It – Twisted Sister (1985)
– Owner Of A Lonely Heart – Yes (1984)
– Back On The Chain Gang – Morrissey (2019)
– West Side – Kooks (2014)
– Praise You – Fatboy Slim (1998)

 

Em tempo: nem é preciso salientar que uma programação conservadora atrai gente conservadora. Talvez isso explique algum aspecto sobre como o rock se tornou refúgio de gente que não entende o passar do tempo, que não reproduz os próprios valores do estilo.