30 Anos de “Wish”: The Cure no fim de seu mundo

 

 

Este ano de 2022 marca tanto os 40 anos de Pornography, quanto os 30 anos de Wish. O intervalo de dez anos entre o quarto e o nono álbum de estúdio da The Cure é cheio de sentidos.

 

Após Pornography, o que parecia o fim da banda se transformou na chance para sua reinvenção. O marco para isso é a popíssima “Let’s Go to Bed”, single do final de 1982. Na trilha dessa virada, vieram canções e LPs que catapultaram a The Cure para números de público e de vendas astronômicos.

 

Pois Wish herda os benefícios dessa fase, com a banda aproveitando o sucesso que foi galopante desde The Head on the Door (1985). Ele estreou na dianteira da parada britânica e no segundo lugar na Billboard norte-americana; suas vendas ultrapassaram a casa do milhão. Mas o álbum de 1992 é também o fim dessa série, pois o seu sucessor, Wild Mood Swings (1996), não se manteve nos mesmos patamares.

 

Além de encerrar o trajeto de pleno sucesso comercial da The Cure, Wish também encerra o ciclo do time com que jogava a banda. É o último álbum com a participação de Boris Williams na bateria e de Porl Thompson na guitarra, eles que estavam desde 1984 ao lado de Simon Gallup e Robert Smith. O quinteto se completava com Perry Balmonte, “promovido” em 1990 após alguns anos como roadie.

 

Outro que tem sua última participação em Wish é o produtor David Allen, que a acompanhava desde The Top, exatamente o primeiro álbum após a finalização da trilogia glacial culminada em Pornography. Vale lembrar que desde antes, a produção era dividida com a banda, Robert Smith à frente dela, acumulando as funções de letrista, vocalista, guitarrista – e eventualmente assumindo teclados e um baixo de seis cordas. Único ponto fixo na trajetória da banda, Smith tornara-se seu mentor e maestro.

 

Sob seus planos e sua batuta, a The Cure passou a compor álbuns com repertórios diversificados, rompendo com o estilo mais homogêneo que predomina em Seventeen Seconds, Faith e Pornography. Um certo ecletismo aparece seja de forma menos programada (The Top), seja sob um projeto quase conceitual (Disintegration). Em Kiss Me, Kiss Me, Kiss Me, ele é praticamente celebrado.

 

Wish insiste nesse ecletismo. Além disso, ele herda as descobertas de The Head on the Door (1985), quando a banda assimilou as maravilhas do groove em sua seção rítmica. Smith pegou no violão para criar as delícias de algo como “In Between Days”. Outros instrumentos e recursos passaram a ser bem vindos, e foram ficando para preencherem os 48 canais em que Wish foi registrado.

 

Para gravar o álbum, a banda, o produtor e sua equipe de assistentes instalaram-se em uma mansão transformada em estúdio no início dos anos 70. Um dos últimos álbuns que seria feito no Manor Studio foi The Bends, da Radiohead. A The Cure passou cerca de quatro meses vivendo na mansão, entre o final de 1991 e o início de 1992.

 

Mesmo dependendo de muita tecnologia, Wish é essencialmente um álbum guitarreiro. Três integrantes da banda empunhavam guitarras. Um deles, Balmonte, entrara no lugar de Roger O’Donnell, cujos teclados preenchiam marcantemente as músicas de Disintegration. O virtuosismo de Thompson aliou-se ao feeling de Smith. As colaborações do trio, junto com afinações alternativas e o recurso a microfonias em algumas músicas, tudo isso conferiu protagonismo às guitarras.

 

Em “Open”, essas guitarras anunciam sua força, amparadas pelo baixo envolvente e a bateria marcante. Há músicas em que elas vêm mais violentas – “Cut” e “From the Edge of the Deep Green Sea”. Na faixa final, “End”, se arrastam, mântricas.

 

Mas Wish tem também uma parte etérea, mais serena – dividida entre “Apart” (que lembra músicas de Disintegration), “Trust” (onde a cena é tomada pelos teclados) e “To Wish Impossible Things” (praticamente acústica, com a melodia reforçada por uma viola tocada por Kate Wilkinson).

 

Entre a energia e a delicadeza que caracterizam esses dois blocos, despontam as demais cinco músicas, o recheio pop do álbum, que incluem: a mais-do-que-doce “High”, a embalada “Wendy Time” e a radiante “Doing the Unstuck”.

 

Friday I’m in Love” se tornou o grande hit de Wish. Uma joinha pop! Foi a música com o videoclipe mais divulgado, dando continuidade à parceria da banda com Tim Pope, outra herança do período iniciado com “Let’s Go to Bed”. Foi destacada em um single, após o lançamento de “High” no mesmo formato.

 

O terceiro e último single foi “A Letter to Elise”, uma música nada menos que maravilhosa. A levada irregular de bateria vem acompanhada de um teclado que soa como um xilofone. A voz de Smith, como ocorre nas canções da banda, é como um outro instrumento. E ainda temos as guitarras oscilando entre a delicadeza e a melancolia, a limpeza e a distorção.

 

Junto com “Cut” e “Wendy Time”, “A Letter to Elise” foi a única música a aparecer em shows antes das gravações de Wish, o que mostra o quanto o estúdio foi um local de composição para a The Cure em 1991. Oito de suas doze faixas têm mais de 5 minutos de duração.

 

Vale conferir outras quatro faixas instrumentais que saíram também das sessões de Wish, assim como as músicas que acompanham os destaques nos singles (procure pela coletânea Join the Dots), pois elas confirmam o ecletismo da banda em sua fase de 1991-1992. Em 1993, a The Cure contribuiria com uma versão de “Purple Haze” em disco-tributo para Jimi Hendrix.

 

Em Wish, as letras continuam a elaborar temas recorrentes nas elucubrações de Robert Smith. “Friday I’m in Love”, com sua esfuziante alegria com dia marcado, é o momento solar do álbum. Ao seu lado estão “Doing the Unstuck”, um chute no balde da vida, e “High”, com suas declarações de alta admiração.

 

Mas o placar pesa mesmo para o outro lado. Nada menos do que cinco músicas tratam de relações desencontradas: “Trust”, “Apart”, “From the Edge…” e “To Wish…”, além de “A Letter to Elise”. Vale destacar novamente esta última, que começa assim:

 

Oh Elise, não importa o que você diga

Eu apenas não consigo estar aqui todos os ontens

Insistindo em representar o mesmo

Que nós representávamos

Todos os jeitos de sorrir

Esqueça

E faça de conta que nunca precisamos

De nada mais do que isso

 

O segundo verso soa estranho, mas é a tradução possível de uma mistura de tempos. A letra é sobre promessas que não se pode cumprir, sobre ser incapaz de fazer alguém feliz. É escrita na forma de uma carta, Smith confessando suas inspirações: um texto de Kafka e uma personagem de um livro de Cocteau.

 

As referências literárias são uma constante nas composições de Smith. Em Wish, elas aparecem ainda em um verso de “Open” que parafraseia um poesia de Sylvia Plath. “A Foolish Arrangement”, lado B no single de “A Letter”, é inspirada em poema de Coleridge. No encarte, a banda cita outro poeta inglês, Shelley: “nossas canções mais doces são aquelas que falam dos pensamentos mais tristes”.

 

Essa doce tristeza aparece também nas músicas mais enérgicas de Wish. “Cut” é outra canção sobre um relacionamento rompido. “Open” descreve os efeitos de uma bebedeira. “Wendy Time” recusa uma tentativa de sedução. Uma leitura possível é juntá-las com “End” para ver nelas lamentos sobre a fama e as situações estranhas que ela atrai.

 

“End” junta a expressão de um esgotamento artístico com a falência de um relacionamento. Algo como: o que eu faço e o que você espera não vão render mais nada de interessante. Portanto: “Por favor pare de me amar, não sou nada dessas coisas”. O destinatário poderia ser o público da banda.

 

É curioso dar-se conta que, após Wish, ocorreu algo parecido com o que aconteceu depois de Pornography: a banda se desintegrou. Em meados de 1994, Thompson e Williams já haviam saído e Gallup estava lidando com problemas pessoais.

 

Smith aguardava o julgamento do processo que Lol Tolhurst movera contra a banda desde 1991 alegando ter sido enganado na divisão dos ganhos financeiros. Mesmo vitorioso, Smith sentiu o golpe. Voltou a pensar em um álbum solo e passou a se dedicar mais às demandas de sua nova mansão no interior da Inglaterra, entrando na fase que inspiraria o personagem interpretado por Sean Penn em Aqui é o Meu Lugar.

 

Em outro front, as notícias tampouco eram boas. O britpop ascendia com força avassaladora, empurrando para a sombra estilos com maior afinidade com a The Cure, como era o caso do shoegaze. Mesmo com o fim dessa tempestade, nunca mais a banda teria um hit como “Friday I’m in Love”.

 

Poderia ter sido o fim. Mas se em 1982 a The Cure foi salva pelo futuro, depois de Wish a salvação veio do passado. No final de 1993, dois álbuns ao vivo foram lançados, ambos com registros da turnê do álbum de 1992. Show, também em formato de vídeo, mostra a banda nos Estados Unidos, com destaque para a performance de Thompson nas guitarras.

 

Show e Paris, apesar de captarem apresentações separadas apenas por três meses de intervalo, trazem setlists bem diferentes. Àquela altura, a banda se beneficiava de um trajeto recheado de boas músicas e podia se dar ao luxo de variar o repertório.

 

A força da The Cure, em minha opinião, vem exatamente de ter construído, desde seus primeiros álbuns, um universo próprio no qual passou a habitar. Não significa que não se comunicava com o resto da cena musical. Mas a forma como o fazia era muito particular. E nisso residia seu encanto.

 

Para compor as músicas de Wish, Smith conta que escutou incessantemente “Mesmerise” da Chapterhouse e “Human” da The Human League. Para cada álbum da banda, ele tinha sua seleção de inspirações. No entanto, não vamos encontrar um parentesco direto entre essas inspirações e o que a The Cure conseguiu fazer.

 

Inversamente, quando a The Cure buscou estar em sintonia com a moda sonora, o resultado não foi convincente. Entre Disintegration e Wish, a banda lançou Mixed Up (1990), compilação de remixes, com uma mãozinha aqui e ali de talentosos DJs, quando buscou uma aproximação com o acid rock dançante de Stone Roses e Happy Mondays.

 

Foi o cartão de visitas da banda para os anos 90, mas soou algo confuso na reciclagem de músicas com registros originais marcantes. Dessa experiência, as coisas mais legais são duas inéditas: “Never Enough” e a versão para “Hello I Love You”, da The Doors.

 

Nessas músicas e nas faixas de Wish, a banda elaborava suas referências e auto referências, com resultados que contribuíram para enriquecer o panorama sonoro da época. A The Cure era capaz de produzir texturas e relevos que estavam muito longe das pretensões e habilidades do grunge, então em seu auge.

 

Seria injusto dizer que depois de 1992 a banda viveu apenas de seu passado. Entre 1996 e 2008, a The Cure lançou quatro álbuns de estúdio, sempre com músicas inéditas. Nenhum deles decepciona.

 

A questão é que o mundo com o qual se comunicava o universo criado pela banda deixou de existir. Mesmo se os maratônicos shows continuam a impressionar, reunindo multidões, inclusive jovens fãs, sua relevância no presente musical talvez tenha se perdido. Como ocorreu com várias bandas muito boas.

 

Acho que pouca gente defenderia que Wish está entre os melhores álbuns da The Cure. Mas é um extraordinário conjunto de canções, algumas maravilhosas. Isso o habilitou para uma indicação para o Grammy de 1993, na categoria “música alternativa”.

 

Alternativa? Estranhamente exato. Wish é o registro de uma banda que se despedia do mundo que havia sido seu. Felizmente, muitas pessoas ainda habitam nele.

 

 

Emerson G

Emerson G curte ler e escrever sobre música, especialmente rock. Sua formação é em antropologia embalada por “bons sons”, para citar o reverendo Fábio Massari. Outra citação que assina embaixo: “sem música, a vida seria um erro” (F. Nietzsche).

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