Disco Inferno ou dançar pra não dançar: o legado da disco music*

Aviso aos leitores de Célula Pop: o texto a seguir foi escrito por mim em 2006 e publicado originalmente pelo saudoso site Rock Press. Decidi recuperá-lo por ocasião dos quarenta anos do infame Disco Demolition Day, evento que ocorreu em doze de julho de 1979 e que precisa ser lembrado porque representa o ódio em grande escala (motivado por preconceitos sociais e sexuais) a um gênero musical. O texto é datado e tem lá suas lacunas, mas decidi mexer só um pouquinho nele para corrigir erros de diversos tipos. Mesmo com as alterações, ele não está livre de erros, é claro. Mantive também a homenagem ao amigo que me motivou a escrevê-lo em 2006. Pensei em produzir texto novo sobre o tema, mas ele repetiria muitas coisas que estão no texto abaixo, então decidi republicá-lo.          

 

*Dedico este texto ao meu querido amigo Eduardo Simões, o maior especialista e fã de disco music que tive o privilégio de conhecer. Com ele reaprendi a valorizar a música de discoteca. Eduardo faleceu no dia 16 de julho de 2006. RIP, querido amigo.

 

 

Doze de julho de 1979 não foi uma quinta-feira qualquer para a cultura pop. Neste dia aconteceu uma manifestação conhecida como Disco Demolition Day. O evento propunha a destruição pública de uma pilha gigante de LPs de disco music, gênero que monopolizava a programação das rádios e TVs de todo o mundo naquela época e, por isso, enervava os fãs de rock e de música “séria”.

 

Steve Dahl, popular DJ de rádio de Chicago, foi o autor da ideia do protesto contra a disco music. Em seu programa diário, conclamou os ouvintes a aderir ao Disco Demolition Day (o nome do evento também foi idéia de Dahl), que aconteceria no intervalo de um jogo de baseball no estádio de Comiskey Park, em Chicago.

Na presença de oitenta mil pessoas, público predominantemente formado por homens brancos e adultos (as fotos do evento suportam tal afirmação), uma montanha de LPs de disco music foi colocada no meio do campo de baseball e dinamitada por Steve Dahl. A euforia tomou conta da multidão, que invadiu o campo, entrou em confronto com a polícia e impediu a realização do segundo tempo do jogo de baseball. O ódio do americano médio à disco music parecia, ao menos naquele momento,  superar a paixão pelo esporte.

 

I Will Survive

Depois deste dia, rádios dos EUA e do mundo que dedicavam sua programação à disco music aderiram ao formato “rock” e abraçaram a emergente new wave. Os artistas de discothèque sumiram da mídia e do cast das principais gravadoras no tempo de uma batida de hi-hat. Os fãs de música “séria” respiraram aliviados: aquela música “descerebrada”, abusada, debochada, extravagante, escancaradamente negra, propositalmente ridícula e francamente gay estava com os dias contados.

Enganaram-se, claro: no momento em que digito este texto, em setembro de 2006, o rádio toca I Love to Love, sucesso de Tina Charles, um dos mais conhecidos hits de disco pop aqui no Brasil e na Europa (nos EUA a gravação não fez muito sucesso). Essa é uma das muitas canções que sobreviveram ao tempo e aos inimigos da disco music e que continuam a fazer pessoas de todas as idades sacudirem as joias nas pistas de dança do mundo.

Everybody Dance

É opinião corrente que a fúria contra a disco music (que lembra muito a rejeição que o rock’n’roll sofreu quando surgiu em meados dos anos 1950) tinha evidente conotação racista e homofóbica (o livro Last Night A DJ Saved My Life: The History Of The Disc Jockey, de Bill Brewster e Frank Broughton, excelente, descreve de forma acurada este momento conturbado da cultura pop, vale a pena ler). O preconceito teve um papel preponderante na marginalização da disco music no fim dos anos 1970, com certeza, mas não foi o único fator que contribuiu para a decadência do gênero musical: a superexposição também teve o seu preço.

Quem estava vivo naquela época deve lembrar: em 1978, tudo era discothèque, até a novela das oito da Globo. Do nada, apareciam no rádio versões disco de canções como Singin’ In The Rain, There’s No Business Like Show Business, La Vie Em Rose e La Cumparsita. Além disso, quase todo mundo gravou disco music neste período, inclusive artistas que não tinham compromisso original com o gênero, mas queriam aproveitar a onda, entre eles Barry Manilow, Frank Sinatra (registrou uma versão discothèque de Night and Day, de Cole Porter, para desespero do Ruy Castro), The Fevers, Angela Maria (a versão disco de Babalu foi lançada em um single de 12 polegadas), Johnny Mathis, Beach Boys (a regravação em ritmo de discoteca de Here Comes the Night continua a ser execrada por fãs do grupo) e muitos outros.

Até James Brown, inventor do funk (que é uma das fontes de inspiração da disco music), publicou um álbum no qual se autoproclamou “the original disco man”. Todos esses aventureiros foram inspirados pelo sucesso espetacular dos Bee Gees e da trilha do filme Saturday Night Fever.

Staying Alive

“Faz o que quiseres, há de ser tudo da lei”, disse Raul Seixas. Poucas frases resumem o espírito dos anos 1970 como esta, que afirma a soberania da vontade individual sobre os interesses da coletividade. A experiência da década de 1960, que privilegiou o coletivo, deu lugar a uma espécie de individualismo experimental, que admitiu liberdade sexual, drogas, escapismo e outros tipos de diversão extravagante e louca. O clichê diz que os anos 1970 foram a década do EU.

Todas as décadas foram do EU e todas serão, se pensarmos bem, mas é fato que o hedonismo individualista próprio da segunda metade dos 1970 foi uma resposta aos fracassos da contracultura nas frentes política e econômica (e, em certo grau, na frente cultural). Cansadas do ambiente de contestação da segunda metade dos 1960 e da primeira metade dos 1970, as pessoas decidiram cuidar de si e de seus interesses imediatos (não sem tirar proveito de algumas conquistas contraculturais na área dos costumes).

A cena musical eclética e até dispersiva do início dos anos 1970 acompanhou esta mudança e partiu-se em duas correntes principais, a disco music e o punk. Dos dois gêneros, a disco sempre foi vista como “comercial”, enquanto o punk sempre foi tido como “contestador”. O tempo se encarregou de misturar os sinais e revelar o caráter comercial e contestador de ambos os gêneros. Em comum, disco music e punk tinham o ímpeto renovador: cada gênero surgiu trazendo consigo seus proponentes, novos candidatos a astros.

Os astros do rock, da soul music e do pop do passado tiveram que se esforçar muito para não serem varridos para baixo do tapete pela onda disco e pelo punk. Os Bee Gees foram a exceção à regra. Grupo inglês que conheceu o sucesso nos anos 1960 com baladas românticas e canções “épicas” inspiradas nos Beatles, os Bee Gees, compositores pop de primeira linha, reinventaram seu som e sua imagem para os anos 1970, reposicionando-se como um grupo de blue-eyed soul (com uma ajuda muito grande do produtor Arif Mardin, veterano do selo Atlantic). Os vocais em falsete, característicos de grupos de soul neoclássico como os Delfonics e os Stylistics, foram adotados pelos irmãos Gibb, bem como as batidas da emergente música das discotecas.

A troca do melodrama de Words e de I Started a Joke pela ginga de Jive Talkin’ e de You Should Be Dancing trouxe como recompensa para os irmãos Gibb uma nova onda de sucesso mundial, ainda maior do que a primeira que haviam experimentado. Essa onda terminou por se revelar um verdadeiro tsunami com o lançamento do filme Saturday Night Fever.

I Love Music

O vagalhão discothèque não surgiu do nada. A disco music é uma fusão de soul, funk, salsa, pop tradicional e rock, mas sua origem sonora pode ser traçada nos discos de soul “sinfônico” de Isaac Hayes e de Norman Whitfield, com suas faixas de dez minutos repletas de arranjos elaborados de cordas, de batidas fortes e de “atmosferas”. O precedente para o surgimento da indústria disco é o sucesso do modo de produção industrial da Motown, mas não se pode pensar em disco music sem o som da Philadelphia.

“Funk com gravata borboleta” é uma das muitas definições que o som da Philadelphia recebeu ao longo dos anos. Os responsáveis pela criação do Philly Soul foram Kenny Gamble, cantor, letrista e produtor musical, Leon Huff, pianista, compositor e arranjador, e Thom Bell, pianista, compositor e arranjador.  Este trio, associado a um grupo excepcional de músicos (Norman Harris, guitarra, Ron Kersey, teclados, Ronnie Baker, baixo, Earl Young, bateria, e outros integrantes da orquestra MFSB) e de vocalistas (Billy Paul, Eddie LeVert, Philippé Wynne, Teddy Pendergrass e outros) legou ao mundo um acervo de belíssimas canções dançantes gravadas com grande apuro técnico. The Love I Lost, Bad Luck, I Love Music, Me and Mrs. Jones, I’ll Be Around, Love Is the Message…  a lista de clássicos do som da Philadelphia poderia encher o resto da página em que escrevo este texto.

Gamble e Huff visitavam discotecas no início dos anos 1970 para perceber a reação das pessoas às gravações produzidas por eles e para descobrir o que fazia sucesso nas pistas de dança. Dessas incursões dos responsáveis pelo selo Philadelphia International às casas noturnas predominantemente negras, latinas e gays, surgiram as inovações do som da Philadelphia que a disco music apropriou, como a batida sibilante do hi-hat, os extensos arranjos de cordas e as longas sessões instrumentais que favoreciam o groove sobre a melodia.

YOU SHOULD BE DANCING

É costume definir como marco zero da disco music (o momento em que esta deixou de ser um fenômeno underground para se tornar uma febre mundial) o sucesso comercial das canções Rock the Boat, do grupo Hues Corporation, e Rock Your Baby, de George McCrae (cria do selo TK de Miami, outra fonte de inspiração estética para a disco music), em 1974. É uma escolha arbitrária e discutível, mas serve para informar o momento em que a disco music começou a suceder a soul music e o funk nas paradas de sucessos e nas casas noturnas e iniciou sua rápida e bombástica (como tinha que ser, já que se trata de disco music) dominação mundial.

É preciso observar que o rótulo disco music engloba uma série de sonoridades diferentes. Não precisamos fazer uma lista exaustiva de desdobramentos do gênero, basta recorrer à trilha do filme Saturday Night Fever, que representa e sumariza o gênero quase à perfeição. Praticamente todas as principais vertentes da música das discotecas estão representadas neste álbum: disco pop (Bee Gees, Yvonne Elliman), som de Miami (KC & The Sunshine Band), som da Philadelphia (MFSB, Trammps), black disco (Tavares, Kool & The Gang), latin disco (nas faixas “Calypso Breakdown” e “Salsation”) e até disco “sinfônica” (as covers extravagantes de Beethoven, por Walter Murphy, e de Mussorgsky, por David Shire). Ficou de fora a euro disco, vertente poderosa da dance music da época que inclui desde os exageros camp de Boney M e Eruption (grupos pré-fabricados por Frank Farian, vigarista que “presenteou” o mundo com o Milli Vanilli nos anos 1990) até as trips eletrônicas de Giorgio Moroder, artista solo e produtor de Donna Summer, para quem conjurou a influente I Feel Love, gravação de 1977 que lançou as bases do que se convencionou chamar de EDM.

 

DISCO INFERNO

Comenta-se que a trilha de SNF incluiria uma faixa de Summer, mas, por questões de cessão de direitos, isso não se concretizou. Tivesse a trilha incluído Donna Summer e uma faixa do grupo Chic, seria o resumo perfeito e definitivo da ópera-bufa. De todo modo, a trilha de Saturday Night Fever é muito divertida e ainda cumpre sua função original, a de fazer o povo dançar. Vinte milhões de cópias foram vendidas à época, um verdadeiro recorde (até o lançamento da trilha de O Guarda-Costas, SNF era a trilha sonora mais vendida de todos os tempos). Cinco canções extraídas do álbum duplo Saturday Night Fever ocuparam o primeiro lugar da parada pop americana em 1977 e 1978.

Com o voo da disco music ao topo das paradas, o som da Philadelphia perdeu força de 1976 em diante. O motivo? A intensidade das vocalizações inspiradas pela música gospel e as letras engajadas de Kenny Gamble não serviam ao gosto da era disco, em que as vozes tinham muitas vezes um papel mais decorativo do que expressivo e as mensagens sociais e políticas mais explícitas foram substituídas por letras que repetiam “dance, dance, dance”, “get down on the dancefloor”, “shake your booty” e outras convocações de teor semelhante. A experiência da pista de dança, de soltar-se numa discoteca, passou a ser o tema principal das letras das canções do R&B mais comercial e acessível.

Visto por muitos como um modismo indesejável e descartável, o som discothèque voltou para o underground nos anos 1980, mas ressurgiu com força nos 1990, com o advento da house music e de outras vertentes da dance music. A febre da música de discoteca destruiu coisas belas ao jogar no ostracismo o funk de James Brown, o som da Philadelphia e a soul music romântica de Stylistics e de outros grupos vocais do início dos 1970, mas ergueu coisas belas também. Muitas canções da era das discotecas pertencem ao imaginário coletivo e incendeiam as pistas de dança de todo o planeta no século XXI. Burn, baby, burn.

 

Zeca Azevedo

Zeca Azevedo é. Por enquanto.

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