Vem aí “Legalidade”

 

Este título parece adequado para o nosso atual momento, certo? Aliás, se fôssemos abraçar a fidelidade necessária ao que vivemos no país hoje, seria “legitimidade”, em vez de “legalidade”. Não significa, necessariamente, que algo contido na lei – dada a interpretações – seja legítimo. Enfim, esta discussão até caberia na abordagem do longa “Legalidade”, que estreia no dia 12 de setembro, em cinemas pelo país inteiro. Como seu maior mérito está, sem dúvida, jogar luz sobre um episódio importante para a história recente do nosso país, a Campanha da Legalidade, que teve lugar no Rio Grande do Sul, a partir da renúncia do então presidente Jânio Quadros.

 

O longa, dirigido por Zeca Brito, mostra a Porto Alegre daquele fim de 1961, capital do Rio Grande do Sul sob o governo de Leonel Brizola. O papel que ele teve na sucessão presidencial foi decisivo. Para isso, um pouquinho de história se faz necessário. Jânio, um político conservador travestido de novidade, bradando contra a corrupção e defensor dos bons costumes e da família tradicional brasileira (qualquer semelhança com 2019 é mera coincidência) foi eleito com o apoio do que havia de mais retrógrado no país. Após menos de um ano no governo, renunciou, alegando não resistir a “forças ocultas”, que conspiravam para sua queda. Na linha direta de sua sucessão, estava o progressista João Goulart, herdeiro do trabalhismo varguista, cunhado de Brizola, partidário de políticas nas quais o estado deveria ajudar a encurtar as diferenças entre mais pobres e mais ricos, privilegiando o mercado nacional e os produtores regionais. Ou seja, um governo que iria de encontro aos interesses externos, especialmente dos Estados Unidos.

 

Logo se criou um clima de tensão porque os tais setores conservadores da sociedade, com os militares à frente, não estavam dispostos a entregar a presidência a alguém que iria mudar a lógica do governo. Para isso, tentaram várias manobras para impedir sua posse. Brizola (vivido pelo ator Leonardo Machado), igualmente herdeiro do trabalhismo varguista, ainda mais radical que Goulart, começou a temer um golpe militar e se organizou para garantir a posse do vice-presidente, que voltava de viagem à China. Para isso ele organizou uma rádio, chamada Rádio Legalidade, sob o argumento de que a Constituição Federal tinha que ser cumprida, ou seja, a posse do vice-presidente estava na lei. E era legítima.

 

Pois bem, a história acaba aqui. E o filme, que não é um documentário, mostra o episódio com ares ficcionais, ao inserir no contexto histórico uma trama envolvendo Cecília (Cléo Pires), uma misteriosa repórter do Washington Post, que vai até Porto Alegre para entrevistar Brizola. Por trás da curiosidade jornalística, uma pauta suspeita e misteriosa, que vai se revelando aos poucos, à medida que o filme avança. Ela será um dos vértices de um triângulo amoroso em que também estarão os irmãos Luiz Carlos (Fernando Alves Pinto) e Tonho (José Henrique Ligabue), um antropólogo e um repórter, respectivamente, ligados ao governo brizolista.

 

Ao inserir essa trama ficcional, o filme derrapa. É bem simples entender que Cléo Pires não tem estatura dramática para viver algo que vá muito além dos esteriótipos novelescos e suas caras e bocas colocam a sua personagem num lugar próximo da caricatura. A própria trama vai se mostrando inverossímil e logo nos surpreendemos curtindo muito mais as imagens de arquivo da época, que vão se mesclando às sequências e planos rodados agora. As coisas pioram quando entra em cena Letícia Sabatella, que está pesquisando suas origens em 2004 e o roteiro precisa unir as épocas, algo que também não flui tão bem.

 

Os pontos positivos são, além da divulgação das imagens de arquivo, a interpretação dos irmãos – convincentes até certo ponto – e, sobretudo, o Brizola jovem e forte de Leonardo Machado. Ao contrário do recente Getúlio Vargas de Tony Ramos, que mostra o estadista cansado e apequenado, o ex-governador gaúcho surge pujante e cheio de força, sendo capaz de arregimentar o apoio de vários setores da sociedade e, sobretudo, influenciar e inspirar seus correligionários. O filme acerta no alvo ao mostrar Brizola como mais radical que Jango, através de um diálogo sensacional, mais para o final do filme.

 

Entre erros e acertos, dada a importância do momento histórico, “Legalidade” é um filme que merece ser visto, especialmente com a certeza de que presta um serviço à memória do país. Em termos de maestria dramática e diálogos perfeitos, fica, de fato, a desejar. Mas, repito, vale ser visto num tempo em que o cinema nacional é alvo de tantos ataques, especialmente de quem deveria protegê-lo e abraçá-lo.

CEL

Carlos Eduardo Lima (CEL) é doutorando em História Social, jornalista especializado em cultura pop e editor-chefe da Célula Pop. Como crítico musical há mais de 20 anos, já trabalhou para o site Monkeybuzz e as revistas Rolling Stone Brasil e Rock Press. Acha que o mundo acabou no início dos anos 90, mas agora sabe que poucos e bons notaram. Ainda acredita que cacetadas da vida são essenciais para a produção da arte.

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