Uma não-resenha de Oppenheimer

 

 

Demorei três semanas para conseguir ver “Oppenheimer”. Salas lotadas, falta de tempo, falta de grana, até ingresso para o dia errado eu comprei, portanto, gastei quase o dobro do normal para ver o filme mais recente de Christopher Nolan. Quase desisti, quase esperei para ver num streaming qualquer, mas eu sabia que a experiência completa seria numa sala escura. Na cidade em que moro – Niterói – não há sala IMAX, mas, só de presenciar as mais de três horas de projeção numa telona de cinema, com som apropriado, posso dizer, sem medo de errar: “Oppenheimer”, o filme, é um tijolo arremessado no peito do espectador. É uma porrada, é inescapável, algo grandioso, mesmo. O Cinema precisava há tempos de um filme assim.

 

 

É baseado num livro sobre o físico norte-americano, “Oppenheimer: O triunfo e a tragédia do Prometeu americano”, escrito por Kai Bird e Martin J. Sherwin, jornalista e professor de História respectivamente. O título alude ao titã Prometeus, que ousou “roubar o fogo dos deuses” para dá-lo aos homens. Foi pego e condenado a viver na cratera de um vulcão por toda a eternidade, sendo torturado continuamente. O tal “fogo dos deuses” é uma referência clara ao poder autodestrutivo, constantemente aumentado ao longo dos séculos, chegando ao momento histórico do qual tratam filme e livro: a invenção da bomba atômica em 1945, as consequentes implicações morais e sua utilização como arma de destruição em massa. A partir dela, matar mais ou menos milhares, milhões de pessoas passou a ser uma questão de logística, dessas que as pessoas decidem em planilhas, a partir de relatórios que medem eficácia, efeito e tudo mais. Alguns alegarão que isso serve como dissuasão, ou seja, como um instrumento de manutenção da paz, consequência do assombro, do medo e da certeza de que, caso algo saia errado, todos, TODOS nós morreremos.

 

 

Talvez isso pareça meio sem sentido em 2023, seja pelo fato de que ainda estamos aqui no pós-bomba e de que as guerras continuaram. Ok, não tivemos conflitos mundiais na mesma extensão da Segunda Guerra, mas houve momentos de destruição intensa, de 1945 pra cá, seja na Coréia, seja no Vietnã, no Oriente Médio, Golfo Pérsico, Balcãs, América Central, enfim, o ser humano não foi pacificado pela bomba, apenas precisou se adaptar à sua existência. Mesmo assim, não estamos desmerecendo o poderio letal dos descendentes mais modernos da criação de Oppenheimer, pelo contrário. A perspectiva da destruição total do planeta e da Humanidade é algo assustador, terrível e que, sim, teve origem nas experiências conduzidas por físicos alemães e americanos nos anos 1930. O filme e o livro mostram que, se não houvesse a iniciativa governamental americana pela construção da bomba, o Projeto Manhattan, os alemães a fariam e, sob o comando de hitler, não seria possível medir o nível do estrago que isso traria para o mundo. Sendo assim, foi meio na base do “ruim com ele, pior sem ele” que a bomba foi feita do jeito que foi.

 

 

O filme de Nolan consegue dividir sua ação em dois aspectos. O ser humano Oppenheimer e o físico Oppenheimer. Até quase a metade da projeção, vemos muito mais o cientista em busca de prestígio acadêmico, de reconhecimento mundial entre seus pares e, mais que tudo, procurando satisfazer um ego enorme. Ainda que tivesse conexões com movimentos progressistas, inclusive com sindicatos e o Partido Comunista Americano, a vaidade e a busca por projeção internacional nortearam as ações do físico até ele ser nomeado como Diretor do Projeto Manhattan e, a partir daí, receber carta branca do governo americano para arregimentar quem fosse, visando atingir o objetivo final – a construção de uma bomba de fissão nuclear, capaz de varrer tudo o que estivesse num raio de 1,5 quilômetros de sua área de impacto. Dito e feito.

 

 

O momento mais impressionante do filme é quando acontece o teste Trinity, que foi quando os cientistas e os militares americanos constataram a eficácia da bomba. Filmado de forma impressionante, o teste acontece como um trecho de uma ópera, com ótima manipulação do som e da edição, além da fotografia impressionante – a cargo do suíço Hoyte van Hoytema que já trabalhou em filmes impressionantes como “Não! Não Olhe!” (de Jordan Peele) e em outras realizações de Nolan, como “Dunkirk”, “Interstellar” e “Tennet”. Muito além do preciosismo e da excelência técnica, a sequência do Trinity mostra a contradição moral que norteia todo o longa e toda a vida de Oppenheimer. Sua alternância de semblante, parte felicidade pelo sucesso, parte lenta e inevitável constatação sobre o monstro que havia criado, tudo dando lugar à certeza de que aquele processo passaria para a gestão de mãos políticas e militares a partir do exato instante em que se consumara. Ainda que pareça paradoxal, Oppenheimer, talvez cego pela realização, não se dera conta totalmente de que, a partir dali, não seria mais necessário para o governo americano.

 

 

Todos esses sentimentos e impressões passam sutilmente pelo semblante do ator Cillian Murphy, talentosíssimo, finalmente tendo sua oportunidade como protagonista num longa metragem desta magnitude. Daí em diante, Oppenheimer passa a defender o uso dissuasivo da bomba, ou seja, como um elemento de manutenção de status e não de profunda alteração, como, de fato, aconteceu. Reuniões em que militares e físicos escolhem qual cidade japonesa deveria ser bombardeada, medindo apenas o impacto logístico e não analisando a questão do número de mortes, além do encontro de Oppenheimer com o responsável pelo bombardeio atômico: o presidente Henry Truman, interpretado por um impressionante Gary Oldman, numa das muitas pontas do longa. Ali, o mandatário deslegitima a angústia do físico, reduzindo – ou tentando reduzir – suas questões morais em favor de motivos mais lógicos sobre a extensão dos danos ao Japão. Tudo é magistral.

 

 

Depois da guerra, Oppenheimer adotou posição anti-bomba, ganhando a fúria do governo americano, que desencadeou uma campanha de descrédito do físico perante a comunidade científica e a opinião pública, questionando seus procedimentos, vida privada e suas ligações com o comunismo. Aí entra a figura de Lewis Strauss, militar reformado e integrante do governo, que é esnobado por Oppenheimer e decide persegui-lo até onde fosse possível. A atuação de Robert Downey Jr é impressionante, talvez superando seu melhor momento até hoje – a interpretação de Charles Chaplin, que lhe rendeu uma indicação ao Oscar em 1992.

 

 

O que “Oppenheimer” faz de melhor é expor o questionamento sobre como a Humanidade vai lidar – como lidou – com a possibilidade de se destruir. As implicações desta novíssima condição, a partir de 1945, alterou profundamente o estudo da História e a maneira pela qual passamos a compreender o próprio tempo. Se durante da Idade Média, não havia uma noção formal de futuro por conta da morte certa, de acordo com o apocalipse da bíblia, hoje em dia, no pós-bomba, o futuro se torna presente e passado de acordo a certeza da finitude do planeta e de nós mesmos, nos escapando totalmente das mãos. De alguma forma, Christopher Nolan captou isso e converteu em filme. Ou melhor, em arte. Um espetáculo.

 

CEL

Carlos Eduardo Lima (CEL) é doutorando em História Social, jornalista especializado em cultura pop e editor-chefe da Célula Pop. Como crítico musical há mais de 20 anos, já trabalhou para o site Monkeybuzz e as revistas Rolling Stone Brasil e Rock Press. Acha que o mundo acabou no início dos anos 90, mas agora sabe que poucos e bons notaram. Ainda acredita que cacetadas da vida são essenciais para a produção da arte.

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