Um Oscar Histórico
Já deram uma olhada nos premiados da cerimônia do Oscar? As quatro estatuetas de “Parasita”, o triunfo de Joaquin Phoenix em “Coringa”, o Melhor Roteiro adaptado de “Jojo Rabbit”…o documentário “Indústria Americana”, sobre a necessidade dos trabalhadores americanos precisarem se adaptar às imposições da jornada de trabalho chinesa e sua realizadora disparando um “trabalhadores, uni-vos” qual uma líder sindical do início do século 20…o curta animado “Hair Love”, sobre a aceitação do cabelo afro como ele é…a compositora islandesa vencendo Melhor Trilha Sonora e derrotando seus concorrentes homens… É só ver com um pouco de atenção para notar que o Oscar 2020 foi uma premiação pouco convencional em termos de mensagem. Vamos dar uma olhada?
Não costumo ser otimista em relação a grandes prêmios da indústria, como Oscar, o Grammy e similares. Estas premiações costumam ser feitas tendo em mente apenas critérios baseados nos fatos geradores de lucro, sem levar em conta questões, digamos, artísticas ou estéticas. Isso vem mudando com o passar do tempo e a presença de um sujeito como donald trump na gerência dos Estados Unidos contribuiu para desencadear um processo de resgate dessas questões. Talvez seja algo mais no campo das representações, uma vez que trump é o resultado de uma escolha política que significa a truculência e a falta de entendimento, algo que, no fim das contas, representaria menos gente fazendo parte da coletividade estadunidense em condições dignas. Menos latinos, menos negros, menos imigrantes. E, bem, o mundo em 2020 é tudo, menos puro. O destino do planeta é a mistureba total.
A indústria já notou isso e, longe de ser conhecida por se preocupar com as boas causas, entendeu uma lógica simples: menos gente = menos lucro. Se um governo achata a população com o mais capitalista dos capitalismos, que enxerga mais os números da bolsa de valores que o dos índices de desigualdade, o resultado é, a médio prazo, catastrófico. De que adianta uma economia pujante se ela não chega para todo mundo? E por que escantear pessoas dentro da sociedade, colocando-as em guetos e retrocedendo tudo em nome de uma lógica opressora que irá prejudicar a todos? Não se trata de fazer uma revolução comunista, algo que os trumpistas e os discípulos ao redor do mundo acham possível, mas, sim, pensar num mundo em que haja uma desigualdade menos acirrada, um planeta menos destruído, um sistema um pouco mais justo. Posso ser otimista, mas acho que o Oscar deste ano refletiu esta preocupação e resolveu premiar produções que atacam os pilares do capitalismo, o nazismo – que teima em querer voltar – , deu voz a negros, apontou as questões trabalhistas no mundo pós-moderno e, sim, entrou discretamente para a história.
“Parasita”, por exemplo, levou quatro prêmios, todos considerados importantes. Melhor Roteiro, Direção, Filme Estrangeiro e Filme. É a coroação do cinema coreano, que só existe por conta de subvenção do governo, falando do capitalismo como gerador de uma desigualdade tão profunda, que respinga na ética, na vida e na própria existência de seres humanos que, se iguais em termos “biológicos”, vivem em planos diferentes por conta de sua condição financeira. A relação é tão profundamente desigual que se torna parasitária diante da impossibilidade de mobilidade dentro do ultracapitalismo coreano. A produção usa o dinheiro do governo para criticar o estado das coisas, apontando para o mundo – depois de ontem – que há algo muitíssimo errado. Assim como ele, o indicado a Melhor Filme pela França, “Les Misérables”, também fala sobre isso, de uma forma muito mais crua, sem alegorias, chegando a falar da ascensão de novas forças dentro das massas oprimidas. O final é assustador. Ambos são as maiores críticas possíveis à desigualdade e estavam lá, no mais alto degrau da indústria do cinema. Detalhe: “Parasita” chegou ao Oscar com os prêmios SAG e Globo de Ouro, Bafta, Independent Spirit de Melhor Filme e Melhor Filme Estrangeiro, além da Palma de Ouro de Cannes. Se isso não significa nada, o que significa?
Com dois prêmios, “Coringa” era o mais indicado da noite, com 11 possibilidades. Mesmo que o filme tenha ficado na mente das pessoas como a maior atuação da carreira de Joaquin Phoenix, não dá pra ignorar que sua história é a de uma convulsão social causada pelo desmantelamento do estado de bem estar social. Se levarmos em conta que a ação se passa no fim dos anos 1970, veremos que é a época exata da adoção do atual modelo de capitalismo, o neoliberalismo, que privilegia a especulação sobre a produção, erodindo o estado e as salva-guardas sociais que este proporcionava aos cidadãos. No caso específico do filme, o tratamento psicológico que o personagem central recebe de graça, por conta de assistência do governo, que é suspenso por contenção de gastos e o arremessa definitivamente no poço existencial. Não precisa ser versado em ciências humanas para perceber o caos social na Gotham City retratada na tela, fruto da desigualdade acentuada, de um governo municipal conivente e que ignora as necessidades de mudança e que não vê, como dizia Herbert Vianna em “Selvagem”, “um grande monstro a se criar”.
Pois Phoenix foi premiado, subiu no palco e fez um discurso sobre a … desigualdade e a necessidade de união das pessoas em prol da educação, do respeito ao meio ambiente e aos animais. Falou por um bom tempo e foi ovacionado. Sintomático? Sim.
A vitória de Taika Waititi como autor do Melhor Roteiro Adaptado também é importantíssima. Seu filme, “Jojo Rabbit”, que também recebeu indicações de Melhor Filme, Melhor Atriz Coadjuvante – para Scarlett Johansson – entre outros, é bastante simbólica. “Jojo” é a mais cruel cacetada desferida contra o nazismo já feita no cinema. Longe dos planos solenes dos debates sobre o holocausto judeu, a brutalidade inacreditável do regime alemão ou mesmo o recrudescimento no mundo de hoje, Waititi colocou o entusiasmo pelo nazismo no campo das fantasias infantis que, simplesmente, não podem existir no mundo real. É como se todo o kit existencial do nazismo só fosse possível em criaturas que não têm a menor noção de como é o mundo de verdade, no qual habitam a injustiça, o amor e outros sentimentos básicos, vinculados à necessidade ininterrupta de crescer. Ou seja, se você vai ficar adulto, não será mais compatível com essa coisa de matar, usar suásticas, se achar superior aos outros, e tudo mais. A sutileza da proposta é tamanha que muita gente não percebeu e achou que o filme tira sarro com o sofrimento alheio. É uma visão equivocada, ainda que legítima, dado o arrojo da proposta de Waititi. É possível rir, chorar e adorar seu filme. E entender que o combate mais eficaz a algo tão terrível pode passar por uma espécie de descrença induzida, um “downsizing” de importância, algo parecido com a mula sem cabeça, da qual só falamos e na qual só acreditamos quando somos crianças. Ou seja, gente, nazismo é só pra criança. Cresceu, não dá mais. Isso serve para todos os que são simpatizantes ou se isentam de opinar sobre.
Pra fechar esta reflexão, ficamos com a vitória do documentário “Indústria Americana”, que teve Barack Obama como um dos produtores. Eu não vi o filme, que está na Netflix, mas sei que ele fala sobre a chegada de empresas chinesas aos Estados Unidos e sobre a necessidade de adaptação dos trabalhadores americanos às jornadas de trabalhos propostas pelos novos empregadores. Ou seja, é o velho dilema entre patrão e empregado, que segue vivo em cada entregador de aplicativo, em cada vendedor de quentinha, em cada operário em jornada intermitente, em cada professor desempregado. Neste caso, a produção fala desta nova realidade, mais ou menos parecida com a que surgiu na Revolução Industrial, quando ex-camponeses precisaram se adaptar a jornadas de trabalho brutais. A solução? Se unir, formar sindicatos, resistir. Foi mais ou menos o que uma das produtoras do longa, Julia Reichert, agradeceu o prêmio dizendo que o mundo é melhor quando os trabalhadores estão unidos.
E Petra Costa, a cineasta brasileira, que levou “Democracia em Vertigem” para a disputa, perdeu para este filme. Mesmo que isso seja lamentável, como dissemos em outro texto, Petra é vencedora incontestável e venceu uma batalha narrativa contra a mídia nacional. Para qualquer pessoa que viva fora dos domínios nacionais, o que aconteceu em 2016 no Brasil é o que ela descreveu em seu documentário. Recebeu o apoio e o reconhecimento de vários artistas, intelectuais e diretores, para os quais, não resta qualquer dúvida: Petra falou a verdade, por mais triste e caótica que seja. Sua presença lá, com um vestido vermelho e a disposição de resistir, é equivalente a uma grande conquista. Se ela vencesse, o Oscar seria ainda mais surpreendente, inclusivo e, por que não, revolucionário.
Vamos nos lembrar deste 09 de fevereiro de 2020 como o dia em que o primeiro filme falado num idioma distinto do inglês venceu o maior prêmio do cinema mundial. E que ele falava do abismo capitalista cotidiano, que está nos matando e ao planeta.
Lista de premiados do Oscar 2020:
Filme
“Parasita” (vencedor)
Ator
Joaquim Phoenix – “Coringa” (vencedor)
Atriz
Renée Zellweger – “Judy: Muito Além do Arco-Íris” (vencedor)
Diretor
Bong Joon Ho – “Parasita” (vencedor)
Atriz coadjuvante
Laura Dern – “História de um casamento” (vencedor)
Ator coadjuvante
Brad Pitt – “Era uma vez em… Hollywood” (vencedor)
Roteiro adaptado
“Jojo rabbit” – Taika Waititi (vencedor)
Roteiro original
“Parasita” – Bong jooh Ho e Han Jin Won (vencedor)
Documentário
“Indústria americana” (vencedor)
Edição
“Ford vs Ferrari” (vencedor)
Fotografia
“1917” (vencedor)
Maquiagem e cabelo
“O escândalo” (vencedor)
Mixagem de som
“1917” (vencedor)
Edição de som
“1917” (vencedor)
Curta-metragem
“The neighbors’ window” (vencedor)
Figurino
“Adoráveis Mulheres” (vencedor)
Canção original
“(I’m gonna) love me again” – “Rocketman” – Elton John e Bernie Taupin (vencedor)
Trilha original
“Coringa” – Hildur Guadnotóttir (vencedor)
Animação
“Toy story 4” (vencedor)
Curta de animação
“Hair love” (vencedor)
Curta documentário
“Learning to skateboard in a warzone” (vencedor)
Filme internacional
“Parasita” – Coreia do Sul (vencedor)
Design de produção
“Era uma vez… em Hollywood” (vencedor)
Efeitos visuais
“1917” (vencedor)
Carlos Eduardo Lima (CEL) é doutorando em História Social, jornalista especializado em cultura pop e editor-chefe da Célula Pop. Como crítico musical há mais de 20 anos, já trabalhou para o site Monkeybuzz e as revistas Rolling Stone Brasil e Rock Press. Acha que o mundo acabou no início dos anos 90, mas agora sabe que poucos e bons notaram. Ainda acredita que cacetadas da vida são essenciais para a produção da arte.