“Trilha Sonora para um Golpe de Estado” é obrigatório
A atriz Fernanda Torres foi muito hábil quando usou o termo “Guerra Fria” para se referir ao contexto no qual os fatos de “Ainda Estou Aqui”, filme pelo qual está indicada ao Oscar de Melhor Atriz, ocorrem. É a mais absoluta verdade. Entre o fim da Segunda Guerra Mundial e o fim dos anos 1980, Estados Unidos e União Soviética tentaram de tudo para atrair governantes, estadistas, líderes e países para sua esfere de influência. Muitas vezes essa ação se traduziu em ações violentíssimas, aviltadoras de soberanias nacionais, direitos civis e várias outras instâncias civilizatórias. É possível dizer que o auge dessa “guerra” ocorreu entre meados dos anos 1950 e o fim dos anos 1960, com vários conflitos ao redor do planeta sustentados pelas duas superpotências nucleares. As ditaduras latino-americanas estão no mesmíssimo contexto das lutas pelas independências na África e na Ásia, quase sempre com os Estados Unidos apoiando as antigas metrópoles coloniais – Reino Unido, França e Bélgica – contra as lideranças nacionais desses territórios que, sem qualquer suporte, viam na ajuda soviética a única maneira de sustentar uma luta com chances reais de vitória.
Esse parágrafo introdutório serve para que você entenda o campo de atuação deste magnífico documentário belga, escrito e dirigido por Johan Grimonprez. Na verdade, esse contexto não é totalmente completo, pois, no caso de “Trilha Sonora para um Golpe de Estado”, a ideia é colocar na mesma perspectiva as ações do Departamento de Estado Americano, que incumbiu músicos de Jazz negros de cumprir tarefas diplomáticas em meio ao tumultuado cenário da África da virada dos anos 1950/60, onde pipocavam guerras de independência. Gente como Dizzy Gillespie e Louis Armstrong, entre vários outros gigantes da música negra americana da época, fizeram visitas e shows, não só na África, mas na América Latina (Satchmo esteve aqui em 1957), dentro do programa que tinha o nome de Jazz Ambassadors. Pouco depois, a URSS contra-atacou enviando o Balé Bolshoi ao Brasil.
No caso específico da África, o que aconteceu foi uma disputa pela mentalidade e pela cultura desses povos que emergiam de anos de domínio europeu. Os músicos negros de Jazz conseguiriam conectar-se de maneira, digamos, mais fácil com as populações de lugares como Guiné, Gana e outras repúblicas recém-libertas. Essas visitas, no entanto, serviram como cortinas de fumaça para ações reais de espionagem e diplomacia por parte dos Estados Unidos, visando manter os interesses dos europeus nesses novos países. O caso do Congo é analisado com riqueza de detalhes pelo diretor belga, visto que o país africano sofreu por muito tempo sob o domínio da Bélgica e, após sua independência em julho de 1960, continuou lidando com várias questões que impediam a estabilidade interna e o respeito internacional. Neste ambiente, o documentário mostra com uma riqueza de detalhes impressionante várias imagens de artistas como Louis Armstrong, Dizzy Gillespie, Duke Ellington, Nina Simone, John Coltrane, entre muitos outros, incluindo músicos africanos, usando suas obras – da época – como fio condutor da luta diplomática e política que era travada, com dois lados bem nítidos: os ex-colonizadores, apoiados pelo Ocidente, e os nascentes povos africanos, procurando se organizar em posturas que iam do não-alinhamento à esfera de influência soviética.
Dentre essas imagens de arquivo, estão várias sequências da Assembleia Geral da ONU, ocorrida em 1960, a primeira em que esses países africanos foram admitidos e do quanto precisaram lutar para serem reconhecidos de forma autônoma. Além deles, a delegação cubana pós-revolução ia pela primeira vez a um compromisso internacional, sendo maltratada pela imprensa local e sendo convidada por Malcolm X, o líder americano pelos direitos civis, para ocupar um hotel no Bronx, em plena Nova York. Além deles, a performance do premiê soviético Nikita Khrushchev, opositor ferrenho dos americanos, fazendo discurso inflamadíssimo na Assembleia, pedindo pelo repúdio ao colonialismo e ao neocolonialismo, enquanto desafiava figurões da CIA e visitava a Disneylândia.
Mas o grande plot twist que o documentário apresenta, é a indignação e tomada de consciência dos jazzistas e intelectuais negros americanos da manipulação governamental quando irrompe a revolta no Congo, que terminaria por matar o Primeiro Ministro Patrice Lumumba, assassinado por mercenários sul-africanos conectados com Bruxelas e com os Estados Unidos. A cena em que a cantora Abbey Lincoln e o baterista Max Roach, além da escritora Maya Angelou e vários outros invadem o plenário da ONU para chamar os diplomatas americanos e belgas de assassinos já valeria a ida ao cinema.
Não só pela belíssima montagem, pelo tom quase surreal das imagens e da música que as envolve, mas pela terrível realidade que expõe, “Trilha Sonora para um Golpe de Estado” é um desses filmes essenciais. A luta que ele expõe ainda está em curso e precisa ser mostrada. Está indicado ao Oscar de Melhor Documentário e, sem exageros, é o filme mais importante que vejo em muito, muito tempo. Não deixe de ver.

Carlos Eduardo Lima (CEL) é doutorando em História Social, jornalista especializado em cultura pop e editor-chefe da Célula Pop. Como crítico musical há mais de 20 anos, já trabalhou para o site Monkeybuzz e as revistas Rolling Stone Brasil e Rock Press. Acha que o mundo acabou no início dos anos 90, mas agora sabe que poucos e bons notaram. Ainda acredita que cacetadas da vida são essenciais para a produção da arte.