The Orville – A Atualíssima Jornada Nas Estrelas

 

Um dos primeiros textos da Célula Pop teve Star Trek Discovery como tema. Nele eu dava um depoimento razoavelmente otimista sobre a segunda temporada da franquia, produzida e disponibilizada pela Netflix. Ainda que o tom dark – e irritante – da série permanecesse presente, a nova história – O Anjo Vermelho – mostrava alguns contornos promissores. Ledo engano. O último episódio foi ao ar há uns dez dias e meu otimismo foi pro espaço – sem trocadilho. Discovery é, de fato, um equívoco que seria menor se ela não viesse com o selo “Star Trek” de produção. E tome texto de gente bem intencionada – ou nem tanto – para justificar a absoluta incapacidade da série em se mostrar minimamente bem humorada – um elemento crucial para todas as Star Trek já feitas – ou referendá-la como “distópica”. Ora, façam-me o favor.

Se há uma série de ficção científica fora de seu tempo, que não dá a mínima para o “futuro distópico” – que já chegou, é bom que se diga – ela se chama The Orville. E também está em sua segunda temporada, gloriosamente mostrando que é possível inovar no universo da franquia de Star Trek, manter intactos os elementos originais, extrapolar com humor os conceitos propostos em outros tempos e, a partir disso, flexionar os limites que o gênero impõe. Pense: é muito mais legal interagir com uma pessoa ou obra de arte ou qualquer instância/ente que tenha capacidade de não se levar a sério. É quase uma condição “sine qua non” para o convívio frutífero. Pois The Orville é um caso genuíno e afetuoso de série que se vale desta ideia para avançar.

Pode ser que você só esteja ouvindo sobre ela agora. É triste, mas The Orville não passa em canal pago no Brasil ou está disponível na Netflix, sendo assim um privilégio dos que têm a manha mínima de baixá-la por torrent. A história se passa no século 25, quando existirá a União Planetária, uma comunidade de civilizações planetárias ao longo da galáxia. Além da Terra, centenas de planetas a integram e existe a Frota, uma esquadra de naves que a protegem seus limites territoriais e exploram o espaço. Até aí, absolutamente nada diferente da Federação Unida dos Planetas e da Frota Estelar, de Star Trek. A tripulação da Orville é composta pelo capitão Ed Mercer (vivido pelo produtor, roteirista, criador da série, Seth MacFarlane), sua ex-esposa Kelly Grayson (Adrianne Palicki), os oficiais Gordon Maloy (Scott Grimes), Bortrus (Peter Macon), Isaac (Mark Jackson), John Lamarr (J.Lee), a Doutora Finn (Penny Johnson) e a chefe de segurança Alara Kitan (Halston Sage), substituída na metade da segunda temporada por Talla Keyali (Jessica Szohr).

A dinâmica entre a tripulação é a primeira das muitas novidades de The Orville. Ed e Kelly costumam brigar abertamente na ponte de comando da nave. Maloy e Lamarr fazem pegadinhas com Bortrus – um alienígena moclan – e Isaac – uma forma de vida cibernética avançadíssima. Alara Kitan e Talla Keyali são da espécie xelaya, humanoides de orelhas pontudas que têm força descomunal por conta de diferença de gravidade entre seu planeta natal e o resto da galáxia. Não raro os personagens surgem bêbados, detonados, consumindo pornografia, fumando, reclamando que não pegam ninguém há tempos, entre outras situações absolutamente impensáveis numa nave espacial do século 25. Mais ainda: os roteiros de MacFarlane e seus colaboradores colocam os personagens falando como se estivessem agora, em nosso tempo, equilibrando situações típicas de ficção científica com tiradas e observações que são válidas hoje. Um exemplo: o tenente Gordon Malloy, piloto da nave, se anunciou como sendo de Nova Jersey, o lugar onde nasceu Bruce Springsteen. Tudo é familiar e afetuoso em The Orville.

A série, no entanto, poderia optar apenas pelo caminho da comédia, mas não o faz. MacFarlane – que é criador dos filmes “Ted” e das séries de animação “American Dad” e “Johnny Bravo”, entre outros – aproveita todos os espaços para falar de questões de hoje, fazendo com que The Orville aborde, em meio a uma moldura de humor, situações como racismo, machismo, militarismo, obscurantismo religioso, neofascismo, passado, percepção do tempo, amor, preconceito, tudo de forma natural para a proposta da série. A proposta é tão legal e tão bem desenvolvida que o time de criadores das franquias de Star Trek nos anos 1980/90, Brannon Braga e David Goodman veio co-produzir. Além deles, o ator/diretor Jon Favreau e um time de colaboradores, que vai de Bruce Willis, F. Murray Abraham, Charlize Theron e Liam Neeson a atores que também participaram das franquias mais recentes de Star Trek, como Robert Picardo (o Doutor, de Star Trek Voyager), Tim Russ (o tenente-comandante Tuvok, também de Voyager), John Billingsley (o Doutor Flok, de Enterprise) e Marina Sirtis (a Conselheira Deanna Troy, de Nova Geração). A fluência de The Orville em Star Trek é tão notável que a série foi adotada pelos fãs que são capazes de perceber a essência dos assuntos e a virtuosa forma de abordá-los, proposta por MacFarlane.

The Orville é, talvez involuntariamente, uma versão atualíssima e totalmente integrada ao nosso tempo, no qual é necessário mostrar algo que prenda a atenção do espectador e gere afinidade. O humor, muito bem manipulado e inserido na paleta de cores da trama, é este diferencial. Sua excelência está na maravilhosa capacidade de manipular o cânon da série original e, respeitando-o profundamente, trazê-lo para 2019, sem a maldita desculpa da “distopia” sendo retratada. The Orville está fazendo sua parte para tornar a televisão algo mais legal. E está conseguindo.

 

Grandes destaques nas duas temporadas:

 

– Falar sobre embriaguez infantil no episódio “Ja’loja”.

– Falar sobre uma sociedade que é influenciada pelas mídias sociais no episódio “Majority Rule”.

– Falar sobre machismo nos episódios “About A Girl” e “Sanctuary”, mostrando a sociedade machista dos moclans, uma raça que faz parte da União Planetária.

– Falar sobre violência religiosa em “All the World Is Birthday Cake”.

– Falar sobre a perspectiva da passagem do tempo em “Lasting Impressions”.

– Falar sobre guerra e patriotismo no episódio “Blood of Patriots”

Destaque absolutamente sensacional: o amor pelas canções pop nos episódios. Seth MacFarlane já usou Billy Joel, Bread, Journey, Kool And The Gang e, no episódio mais recente, “Sanctuary”, Dolly Parton, cujo sucesso oitentista “Nine To Five” surge como um hino feminista de refugiadas num planeta anônimo. Genial é pouco.

 

 

CEL

Carlos Eduardo Lima (CEL) é doutorando em História Social, jornalista especializado em cultura pop e editor-chefe da Célula Pop. Como crítico musical há mais de 20 anos, já trabalhou para o site Monkeybuzz e as revistas Rolling Stone Brasil e Rock Press. Acha que o mundo acabou no início dos anos 90, mas agora sabe que poucos e bons notaram. Ainda acredita que cacetadas da vida são essenciais para a produção da arte.

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