“Summerteeth”, o melhor Wilco
Em algum momento de 1999, eu adentrei os refrigerados domínios da Modern Sound, clássica loja de discos que ficava em Copacabana, na rua Barata Ribeiro, entre Santa Clara e Anita Garibaldi. Como era de costume quando chegavam novos álbuns importados, havia várias caixas de papelão separadas por gênero, arrumadas em mesas, embaixo dos paineis habituais de discos, que enfeitavam a loja. Quem comprava lá sabia que estas caixas eram a senha para novos e novíssimos álbuns, coisa única naquele tempo em que a Internet ainda não surgira como um meio de compra de discos. Em meio a vários lançamentos e relançamentos, dei de cara com “Summerteeth”, o terceiro disco do Wilco. Eu já tinha os dois primeiros, “AM” e “Being There”, adquiridos ali mesmo, pouco tempo antes. Era uma fase em que eu ouvia bastante o tal Alternative Country, muito por influência das matérias na Bizz e em alguns poucos sites de informação sobre música que eu já começava a manusear com frequência, em busca de nomes de artistas e bandas. Sobretudo, era uma época em que eu buscava conhecer música “com meus próprios instintos”, mergulhando neste estilo que era a mistura de modernidade cosmopolita com a crueza da tradição do country americano de raiz.
Eu nem sabia que o Wilco lançaria novo álbum. O encontro com “Summerteeth” foi casual e eu não o deixei passar, comprando lá mesmo uma cópia – importada, claro – mesmo sem ter ouvido um segundo sequer de alguma faixa. A julgar pelo que a banda lançara até então, a aposta tinha baixíssimo risco. A banda era, na época, o produto da tensão entre Jay Bennett e Jeff Tweedy, os dois compositores e cérebros do Wilco desde o surgimento. Eram contrapontos, opostos que se atraíam, equilíbrio entre a suavidade do pop perfeito e a poeira da estrada e do coração dilacerado. Em “Summerteeth” essa tensão se pronunciou mais, com uma ênfase maior na presença de Bennett na banda. O disco é uma confirmação de seu talento e capacidade de prover belos arranjos, belas canções, enfeitar com doçura e criatividade as composições de Tweedy. Dessa igualdade maior, nasceu, simplesmente, o melhor trabalho do grupo de Chicago em toda a sua existência. Muitos fãs não gostam do disco, preferem o subsequente, “Yankee Hotel Foxtrot”, que marca outra mutação sonora do Wilco, em busca de um espectro musical diferente, lento, enguitarrado, arenoso e também muito interessante. Bennett, entretanto, deixaria o grupo em 2002. “YHF” foi o primeiro trabalho sem sua presença.
Tweedy e Bennett eram sujeitos com problemas de dependência de drogas. O primeiro teve problemas seríssimos em 2004, quando o grupo já lançava “A Ghost Is Born”, o quinto álbum, no qual estas questões eram a principal inspiração das canções. O problema de Bennett continuou até sua morte, em 2009, aos 46 anos. Não por coincidência, a banda nunca mais foi a mesma, iniciando um processo lento, porém constante, de decadência, que se confirmou com a chegada de trabalhos pouco ou nada inspirados, como “Star Wars” (2015), “Schmilco” (2016) e “Ode To Joy” (2019). Até 2011, com “The Whole Love”, o Wilco ainda conseguiu reproduzir algo da magia dos primeiros seis álbuns, sendo que, inegavelmente, o auge disso tudo está em “Summerteeth”. E a banda, dando sequência ao projeto de relançar seus trabalhos em versões de luxo, colocou no mercado uma impressionante edição quádrupla do disco, com o original remasterizado, um álbum de extras, sobras de estúdio e versões alternativas e a íntegra de um show realizado em Boulder, no Colorado, em 1º de novembro de 1999. É um banquete para fãs do disco.
A majestade de “Summerteeth” está no adorável flerte com a lindeza musical de gente como Paul McCartney e Brian Wilson, os dois maiores compositores do rock/pop planetário até hoje. E tal namorico se dá através da riqueza dos arranjos, que injetam cordas, teclados, pianos e psicodelia nas canções, não deixando nenhuma soar menos que sensacional. É um desses raros trabalhos em que a gente não consegue deixar algo de lado, tudo é belo e marcante. E generoso, uma vez que são 17 faixas, completamente distintas e belas. Alguns dos melhores e mais intensos momentos do Wilco estão contidos em “Summerteeth”. Ponto.
A abertura, com “Can’t Stand It” soa como uma espécie de descompressão em relação ao que a banda lançara até então. É um rock meio setentista, com tonalidade hortifrutigranjeira, que introduz a estonteante “She’s A Jar”, cuja melodia, enfeitada por um fraseado de cordas e mellotron, faz até uma pedra de emocionar. E está aberto o caminho para este mar de preciosidades. Tem “A Shot In The Arm”, com uma levada rapidinha e um teclado oitentista novidadeiro, algo que nunca se ouvira na música do grupo até então. E tome lindeza com “We’re Just Friends”, que parece saída de uma dimensão paralela, na qual Paul McCartney veio colaborar com a banda. “I’m Always In Love” tem o mesmo tecladinho oitentista, já descortinado e incorporado, numa linha melodia irresistível e bela.
A dobradinha “Pieholden Suite”/”How To Fight Loneliness” mostra a capacidade da banda em adentrar o terreno das melodias sombrias e tensas, mesmo num álbum tão exuberante como este. A letra da segunda é um pequeno tratado sobre depressão e o descaso das pessoas para com esta doença. E tem “Via Chicago”, psicodélica e triste, que é invadida por guitarras apitando e vozes desconexas, com barulhos e descompassos, só para ser substituída pelo sol da tarde no parque que é “ELT”, cheia de guitarrinhas e tecladinhos que pousam em árvores verdejantes. O country pianístico fora de foco, invadido por algo que os Beatles poderiam ter lançado em 1969, que é “My Darling”, antecipa o fim do álbum, que é uma prova da belezura absoluta que vinha da banda naquele tempo. “When You Wake Up Feeling Old”, que é praticamente perfeita em seu andamento tradicional, pontuado por violões, guitarras, Fender Rhodes, teclados e flautas que fazem melodias alternativas em meio ao todo. A faixa-título, que é a canção mais adorável que o Wilco já lançou em toda a sua carreira, a epítome de uma caminhada sob o sol de primavera, com direito a passarinhos, tecladinhos e tudo mais. E a arrepiante “In A Future Age”, que tem a perspectiva histórica no meio da beleza estética da própria composição. De quebra, outra faixa linda e alegre: “Candyfloss” e um remix de “A Shot In The Arm”, que traz algumas alterações aqui e ali.
A versão de luxo de “Summerteeth” está disponível nos serviços de streaming em todo o seu brilho. É a amostra de uma banda em seu auge experimental, indo em busca de direções novas e acertando no alvo. Também é uma espécie de canto de cisne de uma dupla de colaboradores e parceiros, separados por conta de desentendimentos de todos os tipos. É o melhor Wilco possível, num mundo que ainda comportava essas canções solares, alegres e docemente ingênuas. É um disco que merece seu amor.

Carlos Eduardo Lima (CEL) é doutorando em História Social, jornalista especializado em cultura pop e editor-chefe da Célula Pop. Como crítico musical há mais de 20 anos, já trabalhou para o site Monkeybuzz e as revistas Rolling Stone Brasil e Rock Press. Acha que o mundo acabou no início dos anos 90, mas agora sabe que poucos e bons notaram. Ainda acredita que cacetadas da vida são essenciais para a produção da arte.
ja tinha escutadado algo da banda, mas How to fight loneliness me ganhou de vez.
Meu caro, é passaporte garantido para belezuras totais. Todas as canções são maravilhosas e as faixas-extras e ao vivo são ótimas também.
Cel, eu passei batido por esse álbum, algo que me arrependo demais!
Que maravilha adentrar nessas canções.; Como sou facilmente cativado por belas melodias, não tem como não ficar arrebatado por esse disco, é uma surpresa melhor do que outra na audição desta obra.
Excelente resenha.
Até logo camarada.