Sleaford Mods – O punk pós-moderno
Quando a gente olha para o punk rock, pensa logo no que motivou o seu surgimento. Desemprego, tédio, falta de perspectiva, neoliberalismo sendo posto em prática…Tudo que contribuiu para o fim do olhar positivo em relação ao futuro. Seja nos Estados Unidos, seja na Inglaterra, a vida em cidades como Detroit ou Sheffield não era colorida, pelo contrário. Os jovens, nascidos nos berços da classe trabalhadora oprimida por décadas, viam uma sociedade que crescia em possibilidades, todas, porém, fora de seu raio de ação. Como fazer para consumir e, num mundo capitalista, adquirir status a partir disso se você não tem um tostão furado? Ou se você, para ter pouquíssimos tostões furados, precisa trabalhar numa fábrica, como motorista de caminhão, empilhadeira, ou, pior que tudo, não consegue nem trabalhar? Os punks eram, em primeira mão, cronistas desta realidade porque viviam na própria pele. Nem dá pra pensar em todos eles como pessoas com posicionamento político definido. Havia conservadores, como Joey Ramone e progressistas, como Joe Strummer. E o mundo seguia. Se o punk comecasse a existir hoje, como seria? Eu quase cravo que seria exatamente como o Sleaforfd Mods.
Os ditos-cujos são Jason Williamson e Andrew Fern e iniciaram a carreira em fins dos anos 00, tendo feito sucesso e chamado a atenção da crítica a partir de 2013, quando lançaram o primeiro disco, “Austerity Dogs”. Williamson é o “vocalista” e Fern é o “músico”. O ataque dos caras consiste em voz e umas programações eletrônicas de baixíssimo custo, bateria e baixo, no máximo umas guitarras ou efeitos e, ponto final. É honestidade acima de tudo, com Williamson vociferando sobre a mínima sustentação dada pelas bases pré-gravadas. E é sensacional. Pense bem: num mundo em que o neoliberalismo foi aprofundado e se tornou dominante, que tipo de gente poderia comprar baixo, bateria e guitarra? E ter tempo para aprender? Poucas, certo? Melhor manipular softwares piratas que fazem efeitos semelhantes, atuar como DJ para comprar uma comida pra semana e, quem sabe, escrever uns versos…Este é o mundo dos Sleaford Mods, gente na casa dos trinta e muitos anos, que já viveu o bastante para ter a noção exata de que o glamour da música é falso, que a realidade dói e que os governantes do mundo estão coniventes com uma sociedade que é desigual e pouco ou nada fazem para mudar isso. Pelo contrário.
O idioma inglês tem um termo interessante, que se aplica perfeitamente ao tipo de performance que Jason Williamson oferece como cantor: “rant”. É mais ou menos “retórica”, ou, se fosse verbo, “falar com retórica, discursar”. São verdadeiros discursos anti-sistema o que ele faz sobre as bases pré-gravadas. O sotaque é de Nottingham, interior da Inglaterra e os temas são racismo, pobreza, frustração, decepção, desapontamento. É bem real e dolorido, mesmo num idioma que muitos podem ter dificuldade para dominar. E é sincero, algo que todo artista – ainda mais punk – precisa ser para subir num palco ou gravar um disco. É como se um personagem dos filme do cineasta inglês Ken Loach montasse uma banda e se apresentasse contando sua vida. Não por acaso, o Sleaford Mods teve colaborações com o Prodigy no passado recente (a faixa “Ibiza”, do disco “The Day Is My Enemy”, de 2015). Dá pra traçar um paralelo interessante entre os estilos vocais de Williamson e do finado Keith Flynt. Está tudo lá, com a diferença que Williamson não tem qualquer pretensão de fazer performances e dancinhas. O clima é de parlamentar prestando contas do mandato em praça pública, acompanhado de uma caixinha de som. Chega a ser comovente.
A discografia dos SM está disponível em streaming para quem se interessar em ver como o tempo atua sobre os formatos musicais já existentes. São EPs, álbuns – entre eles os definitivos “Divide And Exit”, de 2013, e “English Tapas”, de 2017 – e uma novíssima compilação, que foi lançada na última semana: “All That Glue”. Segundo declarações de Jason, ela é uma espécie de guia para principiantes na obra da dupla. Gente de outros países que esteja interessada em entender o que eles sugerem como faixas introdutórias para serem gostados e apreciados. Há alguns sucessos e oito canções inéditas, além de outras que foram lançadas em formatos físicos e estavam há muito esgotadas. O discurso é radical: “Music for the masses/ I’m out classed here mate/Inbetween the tashes/And splash out on shit” (em “McFlurry”) ou “So Mr. Williamson, what have you done to find gainful employment/Since your last signing on date?/F*** all” (em “Jobseeker”). Ou seja, ataque frontal e consciência de classe.
O contraste deste discurso com a simplicidades das bases instrumentais soa comovente e sensacional. É como se a gente estivesse de dois caras que estão dando tudo o que têm para transmitir sua mensagem. Às vezes, Fern concede algum espaço para inflexões que surgem do rap, fazendo com que o discurso ganhe ainda mais profundidade e colorações. Se o Sleaford Mods não é uma versão fidelíssima ao ideário punk original, não sei o que pode ser. E, caso não seja, oferece, mesmo assim, uma dose cavalar de sinceridade e engajamento. É música para ouvir entendendo as letras e se enxergando nas letras e discursos que Jason Williamson oferece. Na atual conjuntura, o Sleaford Mods é uma banda apaixonante.
Abaixo segue o link para uma entrevista de Jason Williamson sobre a negligência do governo britânico no pagamento dos trabalhadores que estão na linha de frente da pandemia de Covid-19.
Carlos Eduardo Lima (CEL) é doutorando em História Social, jornalista especializado em cultura pop e editor-chefe da Célula Pop. Como crítico musical há mais de 20 anos, já trabalhou para o site Monkeybuzz e as revistas Rolling Stone Brasil e Rock Press. Acha que o mundo acabou no início dos anos 90, mas agora sabe que poucos e bons notaram. Ainda acredita que cacetadas da vida são essenciais para a produção da arte.
São sensacionais. E vem disco novo logo mais.
Que texto irado. Sleaford Mods é foda demais. Parabéns!