Saint Etienne recria a história em novo álbum
Saint Etienne – I1ve Been Trying To Tell You
Gênero: Eletrônico
Duração: 40 min.
Faixas: 8
Produção: Bob Stanley, Pete Wiggs
Gravadora: Pias
Se Sarah Cracknell, Bob Stanley e Pete Wiggs não fossem o Saint Etienne propriamente dito, poderiam passar por historiadores pós-modernos. Explico. Este décimo álbum do trio britânico em 30 anos de carreira, é uma intrincada e genial experiência de memória. Baseados no pop comercial da segunda metade da década de 1990, o grupo releu algumas canções de sucesso daquela época, sampleou vários trechos e reuniu os pedaços em novas faixas, enfatizando o uso da repetição e das batidas, como se tivessem criado uma via alternativa do dub jamaicano. O resultado, presente nas faixas de “I’ve Been Trying To Tell You” é impressionante e revela a característica principal daquela produção pop de mercado, a saber, o uso indiscriminado de longas repetições de refrãos e andamentos, como se não tivessem fim. E isso foi o que motivou o Saint Etienne a usar partes dessas canções e criar novos panoramas com eles, com um resultado que pode lembrar, na maioria das vezes, uma versão menos sombria do Massive Attack daquele mesmo tempo, quando lançou seu terceiro álbum, “Mezzanine”, em 1998.
Se você olhar para esta produção pop noventista, em seu segmento inglês, vai encontrar gente como Natalie Imbruglia, Lightouse Family, Samantha Mumba, Honeyz, entre outros menos prestigiados, todos devidamente presentes nesta nova visão. Mais do que o resultado sonoro – que é ótimo – a ideia do trio britânico é que dá as cartas aqui. Não só a sacada deste traço em comum na fornada de artistas pop do fim do milênio passado, mas a percepção – até por estar também em atividade na época – de que esta música mais pop acabou ferindo de morte toda uma produção dançante mais revolucionária e pensante, que vinha da cena das raves e da cena dos clubes. Sintomaticamente, é o tempo compreendido entre 1997 e 2001, da vitória no Partido Trabalhista – com Tony Blair – à queda das Torres Gêmeas.
Só que este disco não é mera historiografia. É sobre explorar as possibilidades, sobre criar climas a partir de pedaços e picotes. Tem vocais que não querem dizer algo claro. Veja, por exemplo, o single “Pond House”, que aponta para um lugar que não se sabe ao certo se existe. O sample aqui é de “Beauty on the Fire”, gravada por Natalie Imbruglia em 2001. A própria cantora australiana aprovou o uso via Twitter. O clima é hipnótico, estranho, repetitivo e genial, com vocais que falam “here he comes again” ad infinitum. “Music Again”, que abre o álbum, tem “Love Of A Lifetime”, do grupo Honeyz. O que era pop e tolo transformou-se numa criatura estranha, curiosa e fascinante.
“Fonteyn” tem sample de “Raincloud”, uma canção bela do grupo Lighthouse Family, mas é quase impossível perceber, uma vez que o Saint Etienne despiu o arranjo original até os ossos, pegando apenas um trecho muito próprio e atrasando sua velocidade até o limite. “Little K” tem samples de pássaros, ruídos da natureza e borrões da gravação original de “Til the Night Becomes the Day”, feita por Samantha Mumba no ano 2000. A impressão é de sonhar acordado, algo que dá a sensação de uma lembrança não muito nítida, mas que está lá. Tudo é assim ao longo do álbum, que não é um feixe linear de canções, mas que oferece sensação semelhante a ver uma aquarela sendo feita, pensada, executada, em que tintas mais fortes e nítidas vão ganhando novas cores e dimensões pelo uso da água sobre a tela.
Não é necessário conhecer as canções originais para curtir mais ou menos o álbum. A ideia é apenas saber que estes sons vieram de outras fontes, outros contextos e que, dentro deste álbum, foram submetidas ao filtro não muito nítido da memória, como partes de uma época, de um lugar, de pessoas que vieram e foram. É um exercício admirável de memória dentro da arte, algo que não se vê todo dia. E nem se deve. Maravilhoso.
Ouça primeiro: “Little K”, “Pond House”, “Fonteyn”, “Blue Kite”
Carlos Eduardo Lima (CEL) é doutorando em História Social, jornalista especializado em cultura pop e editor-chefe da Célula Pop. Como crítico musical há mais de 20 anos, já trabalhou para o site Monkeybuzz e as revistas Rolling Stone Brasil e Rock Press. Acha que o mundo acabou no início dos anos 90, mas agora sabe que poucos e bons notaram. Ainda acredita que cacetadas da vida são essenciais para a produção da arte.