Refavela 40 – O Filme
A HBO está exibindo hoje o filme “Refavela 40”, no qual Gilberto Gil e seu filho, Bem, reconstituem os caminhos que levaram o compositor baiano a compor e lançar seu álbum “Refavela”, em 1977. Em 2017 foi criado um espetáculo sensacional para celebrar os 40 anos do disco, que percorreu várias cidades do Brasil e do mundo, para se encerrar no início de 2019, no Circo Voador. Detalhe: eu vi este último show e o resenhei para a Célula Pop, num dos primeiros textos deste site. Veja aqui.
O longa de Mini Kerti é belo e necessário. Não por acaso sua exibição é no Dia da Consciência Negra, uma vez que Gil, em 1977, conseguiu sintetizar de forma magistral os caminhos e percursos que a cultura negra trilhava dentro e fora da África, num momento historicamente decisivo, por conta das recentes lutas de independência dos países africanos em relação às metrópoles europeias. Na época, Gil fora convidado para participar do II Festac, o Festival da Cultura Negra, realizado em Lagos, na Nigéria. A primeira edição, dez anos antes, tivera lugar em Dakar, no Senegal. A ideia do evento era discutir a cultura negra a partir da perspectiva trazida pelos processos de independência e como isso reverberava nas populações afrodescendentes, especialmente nos Estados Unidos, no Caribe e no Brasil.
Gil voltou impregnado de informações e fascinado pelo que vira. Entrou no estúdio com uma banda que ele reunira para a apresentação no Festival, que tinha, entre outros, o baixista Rubão Sabino, o percussionista DJalma Correa e o baterista Robertinho Silva. Todos aparecem neste filme, relembrando histórias da viagem e da gravação do álbum. Aliás, as imagens de arquivo tornam “Refavela 40” indispensável. Vemos sequências de Gil e banda na Nigéria, além de outros trechos de filmes sobre candomblé, além de entrevistas com fundadores do Bloco Ilê Aye (Vovô do Ilê e Paulinho Camafeu) e o mais importante representante da cena Black Rio, Dom Filó. É importante lembrar que tais manifestações se inseriam na novíssima cultura africana pós-diáspora, criadas em lugares para onde os negros foram forçados a emigrar, estabelecendo novos laços e perspectivas.
Cada faixa do disco original tem sua origem esmiuçada e surge com interpretações do espetáculo coletivo Refavela 40, que teve as presenças de Céu, Moreno Veloso, Nara e Bem Gil, além de vários outros músicos convidados, que conseguiram reproduzir as dinâmicas das gravações originais e seu clima. Os depoimentos de Gil e dos participantes do disco são preciosos e constituem uma fonte inesgotável de informação para quem estuda o assunto “música/cultura negra”.
“Refavela 40” é um filme importantíssimo, que surge num tempo em que os negros precisam ainda reafirmar sua real dimensão na sociedade brasileira, que tem – felizmente – inúmeros traços culturais oriundos da presença negra em nosso país. O triste – e inadmissível – é pensar na quantidade de dor e sofrimento que isso trouxe para eles e seus descendentes. O filme é um manifesto sobre o disco, sobre Gil e sobre nós, quer queiram ou não.
Carlos Eduardo Lima (CEL) é doutorando em História Social, jornalista especializado em cultura pop e editor-chefe da Célula Pop. Como crítico musical há mais de 20 anos, já trabalhou para o site Monkeybuzz e as revistas Rolling Stone Brasil e Rock Press. Acha que o mundo acabou no início dos anos 90, mas agora sabe que poucos e bons notaram. Ainda acredita que cacetadas da vida são essenciais para a produção da arte.