Rankeando Legião Urbana
Ontem, dia 27 de março, Renato Russo completaria 60 anos. Sempre tenho em mente como seria o velho Manfredini em tempos de burrismo, coronavírus e a tão propalada polarização política. Sempre acho que ele não se transformaria num reacionário, como fizeram alguns de seus contemporâneos de anos 1980. Assim como Cazuza, Russo tinha um espírito livre, mas sensível às diferenças da vida e entre as pessoas. Suas letras não raro versavam sobre elas, usando de poesia fina e destemida para criticar os abismos cotidianos, de classe, econômicos e humanos presentes na nossa realidade.
Há entrevistas com Russo atacando fascistas. Suas performances ao vivo eram pequenos espetáculos rock’n’roll, em que ele transformava canções, inseria trechos incidentais e modificava sensos e sentidos. Aproveitando este sexagenário, descartando coletâneas, um tributo sinfônico e um disco ao vivo, dividido com os Paralamas do Sucesso, lançado postumamente, aqui vai a discografia da Legião Urbana, classificada do menos interessante para o mais sensacional de seus álbuns lançados.
Vamos lá.
– Acústico MTV – 1999 – Apesar de ser um item de valor entre os fãs do grupo, eu considero esta performance chata e mal executada. Sei bem que a Legião nunca primou pelo preciosismo musical, o que até era um de seus charmes de banda, mas, talvez o repertório e a pouca habilidade de Dado Villa-Lobos em segurar a onda, além de Marcelo Bonfá não ser um bom percussionista, tornam este álbum cansativo. Exceção para “Teatro dos Vampiros” e a bela versão de “Last Time I Saw Richard”, de Joni Mitchell.
– Música Para Acampamentos – 1992 – O disco duplo de sobras, gravações ao vivo e faixas raras, que saiu entre “V” e “O Descobrimento do Brasil”, tempo em que Renato atravessou uma de suas fases mais difíceis em termos emocionais. O disco perdeu um pouco do sentido com o passar do tempo e os discos ao vivo que foram lançados, que fornecem a maioria das faixas inseridas aqui. Grande exceção para para uma favorita pessoal, “A Canção do Senhor da Guerra”, que surge no arranjo original, incluído no especial “A Era dos Halley”, exibido pela Globo por conta da passagem do Cometa de Halley, em 1985. Gosto deste arranjo lo-fi, com Renato tocando tudo e emulando “Dixieland”, o hino confederado americano, no tecladinho.
– As Quatro Estações Ao Vivo – 2004 – Registro ao vivo do fim dos anos 1980, mostrando talvez o encerramento do primeiro ciclo da Legião, em que a banda era um pouco mais visceral e punk no palco. O repertório é menos commplexo e o grupo manda bem em várias performances interessantes, com destaque para “Soldados”, “Maurício”, “Daniel na Cova dos Leões”, três quase-hinos gay que Renato quase se entrega de corpo e alma, mostrando todo seu talento como intérprete de suas próprias criações. O som não é dos melhores, o que contribui para o disco não ser melhor que o outro registro ao vivo do grupo, gravado durante a última turnê da Legião, de 1994.
– Como É Que Se Diz Eu Te Amo – 2001 – Lançado em dois CDs simples/1 CD duplo, este é o melhor registro ao vivo da Legião. Gravado no Rio, o show é uma ótima coletânea de sucessos imortais e mostra, mais uma vez, a presença de Russo diante do público. Há momentos especialmente sensacionais, mas a passagem da bela “Vamos Fazer Um Filme” para “Que País É Esse?” é antológica, com Renato falando da violência do país, da falta de amor, da pouca preocupação com o próximo e emulando trechos de “Cajuína” (Caetano Veloso” e “Pintinho Amarelinho”, do apresentador Gugu Liberato, como forma de mostrar contrastes e abismos do país. Além disso, belas versões de “Há Tempos”, “Ainda É Cedo”, “Perfeição”, “Andrea Dória” e muito mais.
– A Tempestade – 1996 – O disco que o grupo lançou em meio à morte de Renato Russo permanece como um item de difícil digestão, não por uma eventual queda de qualidade – o que não é o caso – mas pela percepção das péssimas condições de saúde do cantor. O sucesso radiofônico de “A Via Láctea” caiu como uma bomba na cara dos fãs, que notaram o fio de voz que Russo tinha na época. Outras canções como “Natália” e “Dezesseis” contribuiram para o mito sobre o álbum e a belíssima “Soul Parsifal” permanece com o status de tesouro escondido. Mesmo assim, ainda é um disco complicado, que esconde muitas nuances.
– Que País É Esse? – 1987 – A coleção de canções antigas da banda, dos tempos de Brasília, foi bem recebida pelos fãs, mas significou um atraso estético em relação ao parâmetro obtido pelo sensacional “Dois”, de 1986. A única faixa composta na época do lançamento, “Angra dos Reis”, dá esta continuidade, mas é pouco em meio ao todo. Mesmo assim, há ótimos momentos como “Eu Sei”, “Mais do Mesmo”, a antológica “Faroeste Caboclo” e a faixa-título, que fazia todo o sentido na época e mesmo quando foi composta, em meio à ditadura militar.
– Uma Outra Estação – 1997 – O disco póstumo do grupo, lançado um ano após a morte de Renato, com sobras de estúdio e gravações antigas/raras. É arrepiante ouvir a faixa-título, um registro quase terminal de Russo, com a produção de Dado Villa-Lobos conferindo uma aura quase fantasmagórica em termos instrumentais. Além dela, “Dado Viciado”, “Marcianos Invadem a Terra” são outros pontos altíssimos. A ocasião também contribuiu para a aura mágica que este disco ostenta até hoje.
– Legião Urbana – 1985 – O primeiríssimo disco do grupo, lançado na aurora do rock nacional oitentista pós-Rock In Rio é um clássico do estilo. Várias canções ganharam as ondas do rádio, de “Será” a “Ainda É Cedo”, de “Soldados” a “Geração Coca-Cola”, mas o grande lance deste álbum são as canções que permaneceram como “cults”, incluindo aí o hit menor “Teorema”, talvez a melhor do álbum. Temos “Baader-Meinhof Blues”, “A Dança”, “O Reggae”, três colossos da discografia de Russo e cia. E temos a tecnopop “Por Enquanto”, que foi fazer sucesso com Cássia Eller cinco anos depois deste álbum.
– V – 1991 – O “disco doente” da Legião Urbana é um bom exemplo de como uma gravação péssima não chega a atrapalhar um trabalho. Quer dizer, atrapalha se virmos apenas o aspecto técnico. Tudo em “V” é abafado e mal gravado, mas não compromete a beleza de canções como “Teatro dos Vampiros”, “Vento no Litoral”, “O Mundo Anda Tão Complicado” e a épica “Metal Contra As Nuvens”. Um clássico do grupo.
– Descobrimento do Brasil – 1993 – Este é o trabalho mais diversificado da Legião, uma verdadeira beleza de segredos. Tem uma quantidade impressionante de ótimas canções e mostra o quanto o grupo estava evoluindo em estúdio, abraçando timbres novos, teclados e sonoridades eletrônicas bem sutis. Da belíssima “Perfeição”, passando pela impressionante faixa-título, chegando até pequenas maravilhas como “Vinte e Nove”, “Só Por Hoje” e a terrivelmente bela “Vamos Fazer Um Filme”. Além de todas estas, Renato Russo dizia que sua canção predileta estava no repertório deste álbum: “Giz”.
– As Quatro Estações – 1989 – O álbum que marca a “saída do armário” de Renato Russo em relação às suas preferências sexuais é também uma obra de muita riqueza. Mesmo que a gravação não seja das melhores, padecendo de uma sonoridade abafada e mal pensada, “Quatro Estações” tem uma ampla quantidade de clássicos do grupo, além de “deep cuts”. Da exuberância triste de “Há Tempos”, passando pela excelência de “Meninos e Meninas”, pelo sucesso radiofônico de “Pais e Filhos”, e pela linearidade de “Monte Castelo”, “Quatro Estações” tem tesouros escondidos em “1965”, “Se Fiquei Esperando Meu Amor Passar”, “Maurício” e a ótima “Eu Era Um Lobisomem Juvenil”.
– Dois – 1986 – Só quem estava na adolescência em 1986 é capaz de descrever o impacto que este álbum teve em sua vida. Um tratado existencial para quem não tinha a menor ideia de como se comportar diante do mundo e do próximo. Pode parecer exagero, mas era essa a impressão que “Dois” causava quando chegou aos lares dos admiradores da banda. A evolução musical em relação ao primeiro disco é absurda e a capacidade de REnato Russo como compositor já era visível. Projetado para ser um disco duplo, “Dois” soou como um disco simples quase perfeito, contendo hinos legionários. “Tempo Perdido”, “Índios”, “Eduardo e Mônica”, “Acrilic On Canvas”, “Fábrica”, “Quase Sem Querer”, “Daniel na Cova dos Leões”, “Andrea Dória”, tudo está aqui. Até hoje, “Dois” é um dos discos essenciais do rock brasileiro em todos os tempos, um verdadeiro clássico.
Carlos Eduardo Lima (CEL) é doutorando em História Social, jornalista especializado em cultura pop e editor-chefe da Célula Pop. Como crítico musical há mais de 20 anos, já trabalhou para o site Monkeybuzz e as revistas Rolling Stone Brasil e Rock Press. Acha que o mundo acabou no início dos anos 90, mas agora sabe que poucos e bons notaram. Ainda acredita que cacetadas da vida são essenciais para a produção da arte.
Simplesmente sensacional, parabéns Carlos Eduardo Lima, muito bom relembrar esses álbuns, infelizmente não tive o privilégio de estar na atmosfera dos anos 80 e perceber o impacto que teve para essa geração. Particularmente, gostaria muito que você fizesse uma análise da música “Vamos fazer um filme”. Pois como você descreve, é terrivelmente bela, mas algumas partes eu me indago o que o Renato está querendo dizer, do que ele está falando… E chega no final ele pergunta, como é que se diz eu te amo, e a história do Zé chinelão… É intrigante. Se não for pedir demais, você conhece algum trabalho(s) que discute com profundidade Legião Urbana, das letras, do que representava a banda para aquela juventude, os seus anseios, os sentimentos. Num contexto muito efervescente, apesar de ter acabado de sair de uma ditadura de 21 anos e ver a queda da URSS.
Obrigado pelas palavras, Gabriel. Os discos estão aí para serem ouvidos, decodificados e apreciados! Abraço.
Eu acho que boas indicações são as reflexões do Arthur Dapieve e da Chris Fuscaldo sobre a Legião e o Renato, em si. Dá uma googlada que você vai achar. Abraço e boa sorte.
Obrigado mais uma vez, gratidão!!!
Muito bom!
O comentário sobre o Dois, principalmente.
Você escutou todos em cd ou vinil…? se em cd, fo foram os já remasterizados?
Mayrton detestou o que fizeram… (Ele me contou!)
ATé o V eu tive em vinil. Depois, só CD.