Parklife 30 anos: Fascinante e Banal

 

 

Se existe um álbum que representa o tal britpop em 1994, ele é Parklife. Claro, haverá quem discorde disso, preferindo apontar para esse lugar Definitely Maybe. Afinal, o que seria do britpop sem a disputa entre Blur e Oasis?

Enquanto que o Oasis estreava em 1994, o Blur vinha com seu terceiro álbum. Leisure (1991), apesar dos hits “She’s So High” e “There’s no Other Way”, carecia de personalidade. Foi com Modern Life is Rubish (1993) que o Blur encontrou o estilo que cultivaria em mais dois LPs, incluindo Parklife e The Great Escape (1995).

 

 

Conta-se que decisiva para esse trajeto foi a turnê que o Blur fez nos Estados Unidos em 1992. Em meio à febre do grunge, a banda londrina teve dificuldades para ser apreciada. Bateu uma saudade de casa e uma vontade de revanche: o resultado se expressou no álbum de 1993.

 

“For Tomorrow”, o destaque de Modern Life, ganhou um clipe repleto de imagens icônicas. Uma locomotiva inglesa ilustra a capa do LP. São dessa época as “British Images” 1 e 2, fotos em que o quarteto posa com roupas e cenários que em nada combinam com a estética do grunge.

 

O caminho estava aberto para Damon Albarn, Graham Coxon, Alex James e Dave Rowntree aprofundarem as referências e sonoridades que em 1994 colocariam o Blur na vanguarda do Brit Pop. Vale lembrar que, além de Oasis, outras bandas fizeram parte da tendência: Suede (que antes de Parklife sair era um sério concorrente), Pulp, Elastica, Menswear e Supergrass, para citar algumas delas.

 

Lançado no mês de abril, Parklife, com suas 16 faixas, fez enorme sucesso entre compatriotas. Entrou nas paradas britânicas em primeiro lugar e permaneceu nas listas de álbuns mais vendidos por 90 semanas. O Blur ganhou quatro prêmios no Brit Awards de 1995, incluindo Melhor Banda e Melhor Álbum.

 

Albarn, o vocalista, se tornou um poster boy e músicas da banda viraram hinos em estádios de futebol. Em 1994, o Blur era tão famoso quanto o filme Quatro Casamentos e um Funeral e tão promissor quanto os assim chamados Young British Artists.

 

O cultivo do “é nosso”, taí uma coisa cercada de perigos e armadilhas. “British images” teve duas versões porque, pelo menos em parte, a primeira delas foi considerada por críticos excessivamente nacionalista e pouco sensível a questões raciais.

 

Mas se prestarmos atenção nas letras de Parklife, ufanismo é uma acusação que dificilmente poderemos dirigir à banda. Albarn, compositor de quase todas elas, constrói uma espécie de crônica de situações e personagens que fazem parte da vida londrina. Não se trata de uma celebração. Há muita crítica e ironia.

 

“Tracy Jacks” narra a rotina de um servidor público com tédio o bastante para provocar um surto. Outro colapso ocorre em “Trouble in the Message Centre”. Em “Clover Over Dover” vemos um jovem tentado pelo suicídio. “Jubillee” é sobre outro jovem, de vida nada animadora. “Bank Holiday”, assim como “Parklife”, desfila personagens que podem ser tudo, menos grandiosos. “London Loves” fala do amor da cidade por futilidades e banalidades.

 

Por falar em amor, esse é literalmente o tema de outras faixas. Em “Badhead”, o casal não se entende. Em “To The End”, não falta paixão, mas ela parece destinada a levar junto os amantes em seu fim. Em “End of a Century”, a abordagem é mais empática para concluir que “não há nada de especial”. Já “Boys and Girls” adota outro registro, festivo e descompromissado, mas sem perder a ironia que domina outras letras.

 

Em “Magic America”, a ironia vai mais além, transformando-se em sarcasmo ao descrever a viagem de Bill Barret, um inglês que faz turismo nos Estados Unidos, se “divertindo” com compras, comidas baratas e canais de TVs a cabo.

 

“Far Out” é a única faixa composta (e cantada) pelo baixista Alex James. Nela, o céu é a personagem da crônica. Em “This is a Low”, é a costa inglesa que se torna o objeto da descrição. A inspiração vem do Shipping Forecast, a previsão do tempo para a navegação transmitida várias vezes ao dia na Rádio BBC. A viagem pelos portos seria também uma metáfora da depressão?

 

As variações no modo como a vida inglesa é retratada apareceram nas opções cogitadas para a capa de Parklife. Nenhuma delas recaiu sobre um parque! O que mais perto chegou disso foi uma barraca de frutas e verduras clicada em uma feira famosa. Durante um período em que o álbum guardava o título provisório de “Soft Porn”, uma foto do Palácio de Buckingham foi considerada!

 

Afinal, decidiu-se por uma fotografia de galgos de corrida disponível em um arquivo de imagens esportivas. A aparente ferocidade de um dos cães dá margem a diversas leituras. Para a contracapa foi escolhida uma foto da banda no Walthamstow Stadium, onde ocorriam competições desse gênero. Os nomes das faixas simulam a lista de competidores.

 

Albarn confessou que uma das fontes para as letras de Parklife foi o romance London Fields (1989), de Martin Amis. O cenário é futurista, uma Londres em degradação social e ambiental. A trama oscila da comédia para o drama enquanto destrincha um assassinato que é anunciado na primeira página.

 

As situações e personagens de Parklife seriam criticadas como artificiais, meras criações de jovens com formação de estudante de artes. Talvez. O certo é que, em seu conjunto, não há nada de ufanista nelas. Parklife é sobre a vida, fascinante e banal, vista de um lugar como Londres.

 

 

Smiths dos Anos 90

 

Parklife foi gravado entre novembro de 1993 e janeiro 1994, na Maison Rouge, um estúdio na região metropolitana de Londres. Na época, o Blur pertencia ao cast da Food Records, que em 1994 seria vendida para a EMI, que já distribuía seus produtos.

 

A Food Records seguia de perto o trabalho de suas contratadas. No caso do Blur, contribuiu para a mudança do nome da banda – quando se formara em dezembro de 1988, o quarteto atendia pelo nome de Seymour (outra referência literária). Antes de entrar em estúdio, as demos precisavam ser aprovadas pela gravadora.

 

Contudo, o produtor, Stephen Street, foi uma escolha da banda, com quem já começara a parceria na maioria das faixas dos dois álbuns anteriores. Street colaborou para que Parklife remetesse a uma Grã-Bretanha de temas musicais de TV, jingles de feiras e notícias de trânsito. As letras sobre os personagens que povoam o álbum são entoadas como só um britânico poderia fazer.

 

Em Parklife, há claramente faixas que se destacam. “Girls and Boys” foi lançado como single pouco menos de um mês antes do álbum. Uma música disco composta por uma banda de rock, algo com muitos precedentes – Rolling Stones, Blondie, etc – e reincidências – Pulp, etc.

 

Vindo do Blur, foi uma surpresa. Damon usou uma bateria eletrônica para fazer a primeira versão e a levou para o estúdio sem mostrá-la para a gravadora. Street adorou. Com o sinal verde, as bases foram construídas em sintetizadores. Sobre elas vieram os instrumentos. O resultado foi arrebatador, a ponto de “Girls and Boys” permanecer até hoje como o single de maior sucesso da banda.

 

O trunfo da faixa é funcionar tanto como uma música disco quanto como um rock, graças sobretudo ao trabalho de Coxon na guitarra. A letra e a atmosfera buscam remeter às férias de jovens ingleses em ilhas espanholas do Mediterrâneo, mas o refrão produz uma confusão de gênero que foi profética: “Meninas que são meninos que gostam que meninos sejam meninas / Os meninos que fazem como se fossem meninas, as meninas que fazem como se fossem meninos / Sempre devem ser alguém que você realmente ama”.

 

Aliás, em sua aparência e gestos, Albarn cultivava uma estética mais para o lado da androginia que era a marca, por exemplo, do Suede. O contraste com a masculinidade marrenta dos irmãos Gallagher era evidente.

 

O single seguinte foi “To The End”, outra surpresa. Em um álbum “tão inglês”, a faixa remete ao pop orquestral francês. Albarn contracena com Laetitia Sadier, do Stereolab, que responde em sua língua materna. A atmosfera produzida pelos teclados e cordas, sobre a qual Albarn atua com sua voz chorosa e algo desafinada, nos joga para os anos 60. Não por acaso o vídeo reencena trechos de L’Année dernière à Marienbad, filme nouvelle vague de 1961.

 

“Parklife” foi o terceiro single do álbum homônimo. A música já fazia parte dos shows da banda desde 1993. No estúdio, ganhou com a contribuição de Phil Daniels, que atuou no filme Quadrophenia. Lançado em 1979, o filme é baseado na ópera rock de 1973 do The Who, um dos ícones do rock britânico. Daniels vai apresentando os personagens da música, mais falando do que cantando, em contraste com o refrão pop entoado por Albarn.

 

Outro destaque vai para “This is a Low”, embora a faixa não tenha rendido um single. Como “To The End”, é uma balada, mas em estilo muito diferente. A voz de Albarn nos faz viajar junto com os barcos que cruzam as águas britânicas. Atenção para o trabalho de Coxon nessa música, incluindo o solo de sua guitarra.

 

Claro, um álbum que marcou sua época não é feito de apenas quatro êxitos. Em Parklife, o Blur enriquece a trilha tomada desde Modern Life…, Albarn esmerando-se em suas construções pop, Coxon tirando da guitarra sons que estavam fora de qualquer script estabelecido. Albarn é também instrumentista (hammond, moog, vibrafone, cravo) e Coxon tem participações com clarinete e sax. Metais e cordas orquestrais aparecem em várias faixas.

 

Pontuando os destaques, temos o devaneio psicodélico ao estilo Syd Barrett de “Far Out”, a melodia tecida pelo cravo de “Clover Over Dover” e o pop retro-futurista de “Trouble In The Message Centre”. Na mesma linha da última, “London Loves” mistura New Order da fase Power Corruption and Lies, XTC e um solo de guitarra prá lá de esquisito (no bom sentido!).

 

“End of a Century” e “Magic America” estão impregnadas de Beatles. “Tracy Jacks” escancara a influência de The Kinks. “Jubilee” pende para o glam rock da estirpe David Bowie. “Badhead” é outra balada que destila essas várias influências que pagam tributo ao patrimônio musical britânico.

 

Temos ainda o aceno para o punk em “Bank Holiday” e duas faixas instrumentais, “The Debt Collector” e “Lot 105”, que se equilibram (ou não) entre o kitsh e o circense. Percebe-se como não faltam variedade e estilos no repertório de Parklife.

 

Nessa linha, seria incorreto fazer uma aproximação com The Smiths? Explico-me: não se trata de uma relação direta (embora ela possa ser percebida em “Blue Jeans”, de Modern Life). Tem mais a ver com a versatilidade das duas bandas em produzir resultados tão diferentes a partir de elementos que não fogem muito do básico.

 

Em minha defesa, cito Street, o produtor que também trabalhou com The Smiths enquanto ela existiu: “Ambas as bandas tinham uma confiança, um sentimento de que se pode fazer qualquer coisa que se quiser, em qualquer estilo, e ainda vai funcionar e soar como um álbum de verdade.”

 

Com duas vantagens para o Blur sobre The Smiths. Primeiro, apesar das interrupções, o quarteto conseguiu resolver suas diferenças e se manter em atividade. Em 2023, lançaram seu nono álbum, produzido no quadro de um novo reencontro da banda – tema de um documentário que em breve estreará.

 

Segundo, ao contrário de Morrissey, Albarn e sua banda souberam não ficar reféns de uma posição politicamente estreita. Aliás, o baterista Dave Rowntree acaba de ser anunciado como candidato escolhido pelo Partido Trabalhista para disputar um posto no parlamento britânico.

 

Artisticamente, o Blur mostraria sua capacidade de reinvenção ainda nos anos 90. Não teve pruridos de se distanciar do britpop. Nem de dialogar com bandas da “Magic America” (por exemplo, Sonic Youth e Pavement) e com a música eletrônica. Ao longo da década, manteve-se como relevante. Talvez, mais do que o Oasis…

 

 

Emerson G

Emerson G curte ler e escrever sobre música, especialmente rock. Sua formação é em antropologia embalada por “bons sons”, para citar o reverendo Fábio Massari. Outra citação que assina embaixo: “sem música, a vida seria um erro” (F. Nietzsche).

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