Pablo Castro mira o sistema em novo álbum
Pablo Castro – O Riso e o Juízo
49′, 11 faixas
(Independente)

A primeira vez que ouvi falar de Pablo Castro foi vendo o show/DVD “Tênis Clube”, de Lô Borges. Nele está contida a apresentação que o mineiro e sua banda fizeram em 2017, no Circo Voador, executando os repertórios do “Disco do Tênis” e a parcela de Lô em “Clube da Esquina”. Show sensacional, emocionante e que chamou a atenção pela fidelidade com que os músicos executaram as canções, sendo que, uma delas, “Clube da Esquina 2”, surpreendeu ainda mais por conta da bela performance vocal de Pablo Castro, responsável pela direção musical do show, guitarras e pianos, neste caso, solfejando numa região muito próxima do Milton Nascimento de 1972. Certeza que Pablo quase explode as veias do pescoço ao chegar no topo das notas do original, mas tal feito é digno de nota e revelou, pelo menos para mim, com atraso, um artista com carreira e luz próprias. Considerado um dos pontas de lança de uma renovação estética da música de Belo Horizonte no início dos anos 2000, especialmente com o álbum “A Outra Cidade”, feito em colaboração com Makely Ka e Kristoff Silva, Pablo lançou um álbum solo em 2013, “Anterior” e chega ao segundo trabalho com este “O Riso e o Juízo”, lançado mais de dez anos depois.
É interessante notar que os dois trabalhos do músico cobrem um período histórico peculiar, justamente marcado pelo acirramento da disputa política e o consequente derretimento/mutação de setores tradicionais em novas e estranhas formas. Se a antiga direita, racional e “educada” se transmutou em uma exacerbada e antiética forma de manifestação de ideias e defesa de posições, o que teria acontecido com a esquerda? Tal pergunta é procedente, especialmente porque Pablo é um artista engajado politicamente e sua postura, tanto pessoal, quanto criativa, passa diretamente por isso. Justo por criticar a esquerda que se instalou no poder por conta de várias concessões e mudanças de posição, bem como por questionar ideias e práticas adotadas por esta que iam contra a justiça e igualdade apregoadas em campanhas e manuais ideológicos, Pablo sofreu vários cancelamentos nas redes sociais, fruto de uma postura engajada e resistente, marcada por confrontos de ideias com gente de ambos os lados. Podemos não concordar com tudo, mas é sempre admirável quando alguém segue sem abrir mão de princípios e posturas, mesmo que isso afete a própria viabilidade. No caso dele, o acesso a editais de cultura e financiamentos públicos estatais tornou-se impossível e “O Riso e o Juízo” só saiu por iniciativa totalmente independente.
E como estamos no Brasil da lógica de mercado, divulgação e viabilização baseada em mídias hegemônicas e agenda de shows populares, é possível que poucos venham a saber da existência de um álbum tão independente, o que é uma pena. “O Riso…” tem algumas ótimas canções, que mostram/comprovam o talento de Pablo como cantor e revelam um compositor aguçado e com influências que vão dos mineiros habituais – Lô, Beto Guedes -, passando pelos mineiros pouco ortodoxos – João Bosco – e por gente como Caetano Veloso, Chico Buarque, Lenine e Gilberto Gil. Com arranjos eletroacústicos que privilegiam violões e andamentos bem construídos, as canções do álbum mostram diversidade em abordagens sonoras e confirmam uma unidade que tem a ver com esse posicionamento político em nível individual, que norteia as pequenas e as grandes coisas da vida, a maneira como se vê o mundo e como tudo isso faz da pessoa um indivíduo. Parece simples, mas está longe de ser.
Além de compor as melodias do álbum, Pablo também assina as letras e divide a autoria de algumas com Luiz Henrique Garcia, sempre mostrando essa visão aguçada da vida, do vai e vém dos dias e como isso se traduz nos relacionamentos em níveis diversos. Há canções inegáveis de amor especialmente inspiradas, como “Sara (Mãos de Escritora)”, que tem forte ponto de partida no Caetano Veloso do início dos anos 1980 ou “Rapunzel”, que envereda um pouco pela poesia de Gilberto Gil, com andamento próximo do ijexá, com bons achados líricos e melodias bacanas. O mestre Lô Borges colabora em “Por Todo o Universo”, compondo a melodia junto com Pablo, enquanto a letra fica por conta de Luiz Henrique, num resultado que é muito devedor da estética do “Clube da Esquina” enquanto estilo e movimento cultural. Duas das canções mais políticas do álbum surgem como ótimas revelações: “O Povo Prometido”, cantada com Sérgio Pererê, passa a limpo a opressão vivida pelo Brasil desde a colonização, num arco temporal que ainda não foi totalmente superado, enquanto “Voz Ativa”, talvez a melhor do álbum, fale sobre a tal posição política-pessoal que não se curva e mantém-se desafiadora, mesmo diante das circunstâncias. O arranjo evoca um andamento funkeado e acústico, que lembra algumas ideias de Lenine e Marcos Suzano no álbum “Olho de Peixe”.
“O Riso e o Juízo” é um disco que soa bem e prende a atenção. Ele foi concebido para ser ouvido e absorvido em sua totalidade. Com a íntegra das canções e as letras devidamente assimiladas, se revela um painel pessoal que é moderno, atento e urbano, no qual a inquietação ainda é a principal característica. E todo artista tem que ser assim, inquieto. Ouça.
Ouça primeiro: “Voz Ativa”, “O Povo Prometido”, “Por Todo o Universo”, “Rapunzel”, “Sara (Mãos de Escritora)”.

Carlos Eduardo Lima (CEL) é doutorando em História Social, jornalista especializado em cultura pop e editor-chefe da Célula Pop. Como crítico musical há mais de 20 anos, já trabalhou para o site Monkeybuzz e as revistas Rolling Stone Brasil e Rock Press. Acha que o mundo acabou no início dos anos 90, mas agora sabe que poucos e bons notaram. Ainda acredita que cacetadas da vida são essenciais para a produção da arte.