Fazendo justiça com Beto Guedes

 

 

 

Eu tenho muitas memórias de quando comecei a ouvir música. Tive a sorte de crescer numa casa em que havia possibilidade de comprar LPs e ouvir rádio com frequência. Meu avô e minha mãe foram os primeiros responsáveis por me apresentar canções e artistas, ainda que de forma involuntária, ouvindo por tabela um disco sendo tocado na vitrola da sala ou alguma canção no rádio que ficava na mesa ou mesmo no carro do meu avô, quando este me levava para o colégio. E quando chegava o mês de julho e o fim do ano, a gente migrava para Petrópolis e ficávamos auto-exilados na casa que meu avô construíra no fim dos anos 1960. Estas viagens, feitas de carro, eram eventos quase místicos para mim. Então com sete, oito anos, eu fazia corridas imaginárias com outros veículos e decorava as curvas, pontes e túneis da Rio-Petrópolis. Quando não estava ocupado com essas competições imaginárias, prestava muita atenção ao que era ouvido no rádio. Minha mãe deixava a sintonia na Rádio Mundial AM, uma emissora carioca que tocava música estrangeira e brasileira sem segmentação ou cerimônia, sempre com uma seleção de repertório que, hoje, sei que era sensacional. Certamente foi nesse momento que dei de cara com uma canção que nunca mais deixei: “Feira Moderna”. Eu amava a melodia, a letra meio sem sentido e o arranjo, especialmente o tom rock’n’roll que havia na gravação de Beto Guedes. Ele mesmo.

 

O nome ficou guardado porque a canção era executada com frequência. Pouco tempo depois, alguns meses, novamente Beto Guedes surgia no dial da Mundial, dessa vez com uma canção chamada “Sol de Primavera”, que tinha uma letra que começava com “Quando entrar setembro e a boa nova andar nos campos…”. Eu achava aquilo lindo, mesmo com nove anos de idade. E com essa idade, ainda não conseguia saber se preferia ouvir esse ou aquele cantor/banda/cantora. Sei que adorava algumas canções que até hoje ouço e amo: “Look At Her” (Barry White), “Last Train To London” (ELO), “Na Paz do Seu Sorriso” (Roberto Carlos), “Meu Bem Querer” (Djavan), “Foram Me Chamar” (Caetano, Gil , Bethânia), “Goodnight Tonight” (Wings) e dá pra dizer que tanto “Feira” quanto “Sol” estão nessa primeira playlist da minha existência. E Beto Guedes se tornou figura tão importante na minha vida que, quando me arvorei a lançar meu primeiro romance, “Vestido de Flor”, foi de uma canção sua, “Contos da Lua Vaga”, faixa-título de seu quarto álbum, lançado em 1981, que busquei uma epígrafe: “Que será de nós, se estivermos cansados da verdade, do amor?”. Sendo assim, Beto é coisa séria para nós e a ideia deste texto é tentar fazer-lhe justiça, logo hoje, dia seguinte ao seu aniversário de número 73. É bom lembrar que, há três anos, publicamos aqui um Top 15 de canções preferidas do homem (que você confere aqui ).

 

Há muito tempo, tempo demais até, as pessoas só se referem a Beto Guedes como um mero colaborador do álbum “Clube da Esquina”. O disco duplo, lançado em 1972 por Lô Borges e Milton Nascimento, tornou-se uma unanimidade entre os fãs desinformados e desarvorados de música nacional. Aqueles que escolhem uma obra de um artista e a glorificam, sugam, extraem tudo o que é possível e impossível, banalizando-a. Há cerca de um ano, o álbum foi escolhido o melhor de todos os tempos da música nacional por um grupo de jornalistas, músicos e especialistas. É fato que o “Clube” é um baita disco, talvez até merecedor de uma honraria tão grande, mas é impossível dizer que um ou outro trabalho é “o melhor” em uma trajetória musical tão diversa e intrincada como a brasileira. São múltiplos gêneros, artistas, momentos, histórias, a ponto de ser impossível achar algum trabalho que unifique essa malha rodoviária de alternativas e situações. E quando alguém nomeia uma obra com esta atribuição, ela, certamente, será ouvida e percebida sem o cuidado necessário, sendo alvo de inúmeras distorções opinativas. Escrevo isso como alguém que já ouviu “Clube da Esquina” incontáveis vezes, tendo participado até mesmo de uma obra sobre seus cinquenta anos, “Por Tudo Se Faz Canção”, escrita e lançada por Chris Fuscaldo e Márcio Borges no ano passado.

 

De fato, Beto foi um dos participantes da empreitada, mas apenas um deles. O “Clube” é uma criação coletiva e ele não será o nosso assunto aqui, ainda que, sim, a estreia de Beto num estúdio tenha sido com ele, tendo participado ativamente, inclusive, de uma canção emblemática daquele momento: “Nada Será Como Antes”. Mas Beto já era compositor desde 1969, quando assinou “Equatorial”, com Marcio e Lô Borges. Em 1970, viu outra parceria com Lô e Fernando Brant ser gravada pelo grupo Som Imaginário, “Feira Moderna”. Tanto Beto quanto Lô, que eram dois sujeitos com cerca de vinte anos de idade, portanto novatos, saíram fortes das gravações do “Clube” e logo deram as caras em outros trabalhos. Lô teve o seu primeiro disco editado pouco após o “Clube”, o famoso “Disco do Tênis” e Beto participou de um álbum ao lado de Danilo Caymmi, Novelli e Toninho Horta (outro egresso da turma mineira que viera gravar o disco duplo colaborativo). Este trabalho, intitulado “Beto Guedes, Danilo Caymmi, Novelli, Toninho Horta” (1973) serviu para mostrar que havia uma cena de novos talentos que tendia a se espalhar em várias ramificações. Danilo, por exemplo, filho mais jovem de Dorival Caymmi, era um promissor músico naquela época, Toninho era um dos grandes guitarristas jovens surgidos no país e o compositor e baixista Novelli, nascido Djair de Barros e Silva, tendo ganho o apelido por conta de sua admiração pela Nouvelle Vague, era um pernambucano radicado no Rio desde fins dos anos 1960, já com passagem por vários grupos instrumentais e tocado em discos de Marcos Valle, Milton Nascimento, Elis Regina de do próprio Lô. Deste álbum, é digna de nota a bela “Caso Você Queira Saber”, mostrando já a peculiar maneira de Beto interpretar uma canção, algo que ele conservaria por toda a sua carreira – um canto supostamente frágil, vulnerável, até indeciso, mas que revela-se dotado de uma apurada técnica de interpretação.

 

 

 

 

Beto só estrearia solo em 1977, com o impressionante álbum “A Página do Relâmpago Elétrico”, mas ele apareceria com força em “Minas”, lançado por Milton Nascimento, em 1975, dividindo os vocais e a composição de um dos grandes clássicos da carreira dele, “Fé Cega, Faca Amolada”. Com a chegada de “Página”, Beto Guedes entrou definitivamente para o grupo de artistas que haviam surgido com o “Clube da Esquina”, devidamente contratados da gravadora EMI-Odeon e um dos porta-vozes daquela musicalidade surgida então. Canções que emergiam do folk mineiro atemporal, filtradas pelas influências tanto de Beatles quanto de bandas progressivas, Yes à frente, e embebidas por um sentimento de comunhão neohippie que apontava para uma valorização de expressões, vivências e situações de um cotidiano de uma vida mais tranquila, a meia distância entre o campo e a cidade grande. Com título originário de um comentário de Ronaldo Bastos sobre uma página de um livro sobre aviação, na qual aparecia uma foto de um avião de caça Lightning Bolt (Relâmpago Elétrico, lembrando que aviação sempre foi uma paixão de Beto), o álbum é uma das grandes estreias da música brasileira. Com uma banda estelar, que contava com músicos como o próprio Toninho Horta, o baterista Robertinho Silva, Flávio Venturini, Novelli, Nelson Angelo, Beto, que tocou baixo, guitarra e bandolim em várias faixas, começa a enfileirar canções que durariam décadas no imaginário dos ouvintes como, por exemplo, “Lumiar” (dele e Ronaldo Bastos), “Nascente” (Venturini e Murilo Antunes), “Maria Solidária” (Milton Nascimento e Fernando Brant) e a faixa-título, novamente com Ronaldo Bastos, um pequeno épico surrealista meio progressivo, meio folk/sacro.

 

 

 

 

A euforia com “Página” faria com que Beto entabulasse uma sequência de três álbuns, a saber, “Amor de Índio” (1978), “Clube da Esquina 2” (1978) e “Sol de Primavera” (1979), quase sem intervalos entre as gravações e certamente marcando um pico criativo impressionante. “Amor de Índio” é uma de suas obras máximas, que já contava com um foco maior nos formatos mais pop das canções, sem abandonar as influências mineiras e progressivas/beatle do início. A faixa-título é, até hoje, uma das mais belas canções de todos os tempos, com uma letra lindíssima de Ronaldo Bastos e um arranjo lírico impressionante. “Só Primavera”, parceria de Beto com Marcio Borges, investe num arranjo de píano criado por Wagner Tiso, sendo o instrumento tocado por Flávio Venturini, e guarda influências seresteiras, manifestadas pelo uso da viola, tocada pelo próprio Beto. “Luz e Mistério” é outro momento de altíssimo nível, parceria de Beto com Caetano Veloso, com detalhes para o uso do bandolim, outro instrumento que remonta às influências de seresta na música de Beto (vindas de seu pai, Godofredo Guedes). Mas a preferida pessoal do álbum – e de quase toda a carreira de Beto – está aqui: “Feira Moderna”, uma de suas primeiras composições, que já havia sido registrada pelo grupo Som Imaginário em 1970, com vocais de Zé Rodrix. O registro de Beto Guedes é, a meu ver, insuperável, seja pelo riff de baixo de Luizão Alves, seja pelo saxofone de Raul Mascarenhas, seja pela memória afetiva, de ouvir no rádio da velha Brasília branca do meu avô a vencer a serra. Mais tarde os Paralamas do Sucesso incluiriam a canção em seu álbum “Acústico MTV”, de 1999, com o mesmo pretexto, o de ser uma canção que os lembrava dos tempos idos.

 

 

 

 

“Sol de Primavera”, de 1979, é, podemos dizer, o ápice pop de Beto Guedes. A faixa-título foi seu maior hit radiofônico e se tornou tema de abertura da novela global “Marina” no ano seguinte. O álbum era uma mistura dessas composições gentis, que o crítico Mauro Ferreira chama de “humanistas”, um termo que define com precisão a impressão que as gravações de Beto causam. Conta a lenda que ela foi composta no Bar Brasil, em Belo Horizonte, com Beto assoviando a melodia e sua esposa, Silvana, anotando num guardanapo. No dia seguinte, ele não lembrava de nada, mas as anotações dela o salvaram e a música foi enviada para Ronaldo Bastos. A letra otimista de “Sol de Primavera”, escrita por ele, talvez o letrista preferido de Beto ao longo dos tempos, é emblemática, falando da chegada da primavera – e das flores, do verde – como algo que irá colocar as coisas nos eixos, resgatando uma bondade inata às pessoas, uma espécie de sentimento, fraternidade, comunhão. É bom lembrar que muito da carga lírica de todos os compositores adjacentes ao Clube da Esquina têm muito dos ideais hippies americanos, só que devidamente convertidos para a realidade do Brasil setentista, sob ditadura civil-militar. “Sol de Primavera” ainda traz outras pequenas pepitas: “Cruzada”, de Marcio Borges e Tavinho Moura, “Pedras Rolando”, outra parceria de Beto e Ronaldo e a cadenciada “Roupa Nova”, de Milton Nascimento e Fernando Brant, sem falar na famosa versão para “Norwegian Wood”, dos Beatles, com participação de Milton.

 

 

 

 

Se “Sol de Primavera” é otimista, “Contos da Lua Vaga”, de 1981, é um álbum mais, digamos, realista. Talvez o termo “pessimista” não se aplique à musicalidade de Beto Guedes, mas, certamente o tom é mais pungente neste trabalho, que traz uma indignação crescente em relação ao estado das coisas. A morte de John Lennon é estopim para a bela “Canção do Novo Mundo”, mais uma de Beto e Ronaldo Bastos, contendo o verso dolorido: “oh, minha estrela amiga, por que você não fez a bala parar?”, se referindo ao assassinato do ex-Beatle. Dá pra notar um sentimento político em “Veveco, Panelas e Canelas”, de Milton Nascimento e Fernando Brant, bem como em “O Sal da Terra”, outra de Beto e Ronaldo, que também leva o sentimento para a preocupação com a ecologia. Mas a faixa-título, a meu ver, é o maior momento do álbum, um verdadeiro brado ao entendimento, ao caráter, ao tal “humanismo”: “a vitória do sentimento claro, vencendo todo o medo, mãos dadas pela rua, num destino de luz e amor” ou no verso que eu selecionei para o meu livro: “o que será de nós, se estivermos cansados da verdade, do amor?”. São perguntas doloridas, como se este sentimento humano, essa cultura de valores éticos e de caráter estivesse ameaçada pelo andar das coisas, pelo momento do mundo, que, sabemos bem, mudaria demais ao entrar nos anos 1980.

 

 

 

 

Não por acaso, os anos 1980 acusam o início do declínio da carreira de Beto Guedes e isso acontece por vários motivos. As mudanças na tecnologia de gravação, a eletronização gradual dos instrumentos e as influências de estilos como new wave e punk em substituição aos parâmetros do soft rock e do progressivo pop trouxeram necessidades estéticas novas para todos os artistas cujas carreiras floresceram nos anos 1970. Rapidamente as sonoridades praticadas por estes envelheceram, não só por estas questões estéticas, mas muito por conta de novos elementos de divulgação midiática, notadamente a televisão, obrigando modificações nas regras de disponibilidade dos artistas. Beto Guedes, tímido, introspectivo e temperamental, foi um dos mais atingidos com isso. Ele sempre foi um cara do estúdio, da composição, jamais um sujeito dado a clipes ou aparições frequentes. E a sonoridade dele não reagiu bem ao molho tecnológico que “Viagem das Mãos”, seu álbum de 1984, recebeu da produção de Mayrton Bahia. Não se trata de um trabalho ruim, pelo contrário, mas é notável a mudança de sonoridade, acentuada especialmente numa canção antiga como “Paisagem da Janela”, gravada por Beto aqui pela primeira vez. Outra versão de sucesso dos Beatles, neste caso, “Til There Was You”, ressurge como “Quando Te Vi”, com letra de Ronaldo Bastos, certamente a canção mais conhecida deste álbum, que ainda tinha bons momentos como “No Céu, com Diamantes” (mais citação aos Beatles, outra parceria com Bastos) e a simpática “Rádio Experiência”, colaboração de Milton Nascimento com Tunai.

 

 

 

 

O mesmo sentimento de produção “pop oriented” permeia o trabalho seguinte, “Alma de Borracha”, de 1986, que, a meu ver, é melhor que o anterior, justo por conter uma das minhas mais queridas canções de Beto: “Lágrima de Amor”, parceria de Luiz Guedes com Márcio Borges, numa espécie de continuidade da busca pelo espírito humano e justo de outras composições gravadas por ele, além de uma certa dose de autorreferência, especialmente em versos como “O mistério, do sol de primavera lá da serra, lágrima de amor, que nenhum de nós jamais chorou”. Há uma parceria com o niteroiense Dalto em “Calor Humano”, com participação do mesmo, que estava com popularidade alta nas paradas de sucesso de 1982, fazendo uma música bem próxima dos mineiros. “Tudo em Você”, outra de Beto e Ronaldo Bastos, também foi uma das canções interessantes mas, mesmo que soasse um pouco melhor que “Viagem das Mãos”, este álbum acentua a impressão de que Beto estava perdendo um pouco do brilho. O disco seguinte foi um grande sucesso, “Ao Vivo”, trazendo trechos de apresentações feitas no Morro da Urca, no Rio, nos dias 27, 28 e 29 de agosto de 1987, enfileirando sucessos de outros momentos e provando sua força: “Lumiar”, “Sal da Terra”, “Quando Te Vi”, além de “Amor de Índio” e “Luz e Mistério”, estas duas com participação de Caetano Veloso.

 

 

 

 

 

 

A virada dos anos 1980/90 marcam o momento da eleição do governo collor de mello, num momento em que a música pop brasileira deixara para trás o rock feito por aqui e abraçara o sertanejo para as massas, com contribuição marcante da globo e de suas novelas e programas. Em pouco tempo, os grupos de axé e pagode se juntariam a este panorama e não há nada que seja mais distante deste universo do que a música feita por Beto Guedes. Ele ainda tentou voltar ao estúdio e lançar um álbum em 1991, chamado “Andaluz”, que, ainda que seja bacana, não se compara com os trabalhos do passado e ainda falha em incorporar alguns elementos eletrônicos à produção, sem muito sucesso. Além disso, em tempos de radicalismo estético no pop rock nacional, com a chegada da MTV e primazia de estilos como grunge e britpop, Beto, que já não estava mais muito disposto a cumprir formalidades e fazer concessões, foi sumindo de cena aos poucos, se dedicando ao seu hobby de montar e pilotar pequenos aviões. Com o tempo, sua voz, tão peculiar e marcante, foi perdendo a força e a versatilidade, algo que foi contribuindo para uma decadência lenta e gradativa.

 

 

 

 

O mesmo processo parecia acometer o velho companheiro Lô Borges, tanto que os dois foram contratados pela mesma gravadora entre fins dos anos 1990 e início dos 2000, a Sony. A ideia era recolocá-los no mapa, apresentando seus trabalhos para um novo público, em discos que traziam regravações de sucessos do passado, com participação de convidados. O de Beto veio em 1999, chamou-se “Dias de Paz” e trouxe participações de Milton Nascimento, do próprio Lô Borges, Paula Toller, Djavan, Toni Garrido e até da pequena Maria Luíza Jobim, com versões bem produzidas no estúdio por Jacques Morelenbaum à frente de um orçamento polpudo. Além dos sucessos, algumas inéditas como “Dias Assim” (parceria com Chico Amaral), “Dias de Chuva” (uma regravação de “Rainy, Days And Mondays”, dos Carpenters, com letra de Ronaldo Bastos) e “Tristesse”, esta última, com vocais de Toller. Mesmo com a empreitada e a boa vontade de Beto em cumprir agendas e compromissos tediosos, o álbum não foi muito longe.

 

 

 

 

O contrato com a Sony ainda trouxe um álbum ao vivo em 2002, comemorando 50 anos de Beto, com lançamento também em DVD, que teve uma recepção interessante por parte de fãs, mas que falhou na tarefa de apresentar o artista para novos e novíssimos admiradores. Dois anos depois, veio o último álbum de inéditas de Beto, o bom e esquecido “Em Algum Lugar”. De certa forma, a chegada dos anos 2000 e a pluralidade de estilos convivendo em novas e múltiplas formas de audição, especialmente a Internet, fez com que a sensação de ouvir um álbum de canções inéditas de Beto naquele tempo fosse mais natural do que dez anos antes. A sonoridade do disco também não tinha a preocupação de incorporar timbres e modismos, foi concentrada nos velhos e novamente vigentes parâmetros do pop soft rock anglo-americano dos anos 1970, o elemento de conforto de Beto. O resultado é um trabalho arejado, diversificado e com detalhes bacanas. Há uma versão para uma canção bacana de Jimmy Webb, “The Moon’s A Harsh Mistress”, que se tornou “O Amor Por Nós”. Há uma boa regravação de “A Via Láctea”, canção clássica de Lô Borges, além de momentos ternos, com a parceria com Milton Nascimento em “Amor de Filho” e uma espécie de reverência à família com “Lamento Árabe”, do pai, Godofredo, e “Júlia”, de seu filho, Gabriel, que homenageava a filha recém-nascida. É bom lembrar que “Gabriel” fora título de uma das canções de “Alma de Borracha”, de 1986, cumprindo assim uma espécie de ciclo de renovação familiar e homenagens. O último trabalho lançado de Beto é “Outros Clássicos, Beto Guedes Ao Vivo”, um álbum de 2010, que traz gravações de canções “deep cut” da carreira do homem, com destaque para “Só Primavera”, “Luz e Mistério”, “A Página do Relâmpago Elétrico” e até uma das boas faixas de “Andaluz”, “Olhos de Jade”, devidamente resgatada e recontextualizada.

 

 

 

 

Beto Guedes experimentou uma discreta renascença com a redescoberta do “Clube da Esquina” como uma obra atemporal. A cidade de Niterói, onde o álbum foi composto e concebido, homenageou os envolvidos em sua criação e Beto estava entre os agraciados com títulos de “Cidadão Honorário”, além de participar de shows ao ar livre. Ele tem participado de apresentações com amigos daquele tempo, especialmente Lô Borges e o grupo 14 Bis, mas não há qualquer sinal de retomada de sua carreira sob o ponto de vista da composição e gravação de material novo. Tanto o filho de Beto, Gabriel, quanto sua neta, Julia, têm carreira musical iniciada e dão a esperança de que o legado do homem siga adiante, mas o que importa mesmo é que sua obra seja revalorizada. Seus discos precisam ser ouvidos. Sua fase na EMI, entre 1977 e 1991 tem muitos trabalhos de altíssima qualidade, especialmente “Amor de Índio”, de 1978, talvez sua obra prima. O que deve-precisa ser feito é fazer o trabalho de Beto Guedes circular, ser conhecido, chegar aos ouvidos do maior número de pessoas. Ele é um dos grandes da nossa música e merece o máximo de reconhecimento. Faça sua parte.

 

 

 

 

CEL

Carlos Eduardo Lima (CEL) é doutorando em História Social, jornalista especializado em cultura pop e editor-chefe da Célula Pop. Como crítico musical há mais de 20 anos, já trabalhou para o site Monkeybuzz e as revistas Rolling Stone Brasil e Rock Press. Acha que o mundo acabou no início dos anos 90, mas agora sabe que poucos e bons notaram. Ainda acredita que cacetadas da vida são essenciais para a produção da arte.

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