A beleza inescapável do Beach House

 

 

Beach House – One Twice Melody

Gênero: Rock alternativo

Duração: 84 min
Faixas: 18
Produção: Alex Scally e Victoria Legrand
Gravadora: Sub Pop

5 out of 5 stars (5 / 5)

 

 

 

 

À medida que a gente vai ficando mais velho, fica mais complicado dizer qual sua banda preferida. E também fica mais difícil abrir espaço para artistas “novos” neste seleto hall de preferências. Com a dupla americana Beach House não aconteceu isso. Logo que ouvi seu segundo álbum, “Teen Dream”, há doze anos, sabia que estava diante de um artista superlativo, com muito ainda a mostrar e garantir espaço no meu grupo de gente mais querida na música em todos os tempos. Não deu outra – desde então, Alex Scally e Victoria Legrand já soltaram cinco álbuns e uma coletânea de lados B, todos irrepreensíveis e belíssimos, avançando gentilmente pelo terreno pavimentado por bandas como Cocteau Twins e similares ao longo dos anos 1980 e início dos 1990. O que era guitarra e efeito nas mãos, digamos, de um Robin Guthrie, dos Cocteaus, se tornou gelo e tempestade pelas teclas de Victoria, espelhando e, ao mesmo tempo, criando novas possibilidades para o que a crítica chama de shoegaze ou dreampop. As melodias parecem submetidas ao frio extremo de um congelador emocional, saindo de lá cobertas por uma camada a mais de beleza e possibilidades. Por baixo dessa “cobertura”, há mais e mais detalhes melódicos e de arranjo que dão conta da genialidade da dupla. E, bem, quando um artista lança um disco duplo em quatro parcelas via streaming, é porque sabe muito bem o que está fazendo. Este é o caso deste admirável “One Twice Melody”.

 

Primeiramente é bom você ter a certeza de que não há tempo perdido por aqui. Não há faixa ruim, desperdiçada ou algo assim. São dezesseis exercícios de beleza e estética dentro do que o grupo de propõe desde a estreia, em 2006, e que sempre levou adiante, com paciência e noção. Deu no que deu – uma maturidade natural, com segurança e domínio deste formato. Victoria e Alex cantam e suas vozes se dobram e misturam, mas também seguem sozinhas quando é a hora. As cascatas e pororocas de teclados que Victoria constroi são solenes mas detém uma intimidade com o ouvinte, que, via de regra, sai com a impressão de que já ouviu aquilo em algum lugar. A moça, que é neta do compositor francês Michel Legrand, tem a habilidade de se conectar com um inconsciente coletivo pop rock das últimas décadas, indo e vindo com novidades que já pressentimos. E Scally tem a noção de que sua guitarra está na dupla para dar corpo e sentido a texturas. Não há solo, linha ou base, a guitarra no Beach House é elemento de constituição sonora, tudo se mistura naturalmente, sem cerimônia. E, bem, não é apenas isso. Scally tem ótimas sacadas de arranjo e contribui para que a tal “cobertura gelada” se amplie para o máximo de sentidos e espaços.

 

O Beach House veio lançando o álbum em EPs com quatro e cinco faixas cada. Com isso preparou o terreno para elaborar o conjunto das canções de modo que elas tivessem sentidos e significados juntas, mais tarde. O resultado é que “One Twice Melody” não tem qualquer problema de coesão, tudo aqui é perfeitamente encadeado e mostra o quanto a dupla evoluiu em uma de suas principais virtudes – a composição. Todas as melodias aqui são dotadas de ganchos pop mais ou menos evidentes. Todas têm aquele caminho natural que dá conforto ao ouvinte, mas que não confere nenhuma sensação de banalidade, pelo contrário. É como se a gente já soubesse o que vai acontecer, mas precisasse e quisesse ouvir pra crer. O Beach House é elaborado e classudo, mas não abre mão desta familiaridade de inconsciente coletivo e compartilhado. E as faixas que habitam este resultante disco duplo dão conta de um artista no topo da forma, dono de um jeito próprio de compor e gravar, oferecendo ao público esta identificação tão complexa e importante em relação à obra.

 

Ao longo das dezesseis canções, o ouvinte se depara com momentos de brilho intenso. Do último EP, “Hurts To Love” tem um charme próprio, que une simplicidade de fita demo com uma classe impressionante. “Only You Know”, que foi single, tem barulho de ondas sutis que antecedem uma batida totalmente pós-punk oitentista, que se mescla a uma cama de teclados sinfônicos e vozes diáfanas, tudo num efeito próximo da magia e da beleza absolutas. “New Romance” e “ESP” também vão numa onda oitentista – como quase tudo que a dupla pensa e elabora – mas com diferentes graus de mergulho e referência. A segunda, por exemplo, tem um arranjo que usa violões dedilhados que surgem como boias em meio a um mar de teclados, enquanto a voz de Legrand parece vir de cima, das nuvens. Mesmo assim, de alguma forma, a impressão é que de estamos num litoral de algum lugar, com algo mágico por acontecer. As três grandes canções do disco, curiosamente, são as três primeiras. “Only Twice Melody”, “Superstar” e “Pink Funeral” fornecem, em sequência, sem chance de fôlego para o ouvinte, a oportunidade de fazer diferentes mergulhos em recifes de coral da mesma praia, com cores e detalhes próprios. Tudo é lindo, celestialmente elaborado, com melodias e arranjos irretocáveis.

 

Quando um artista lança um disco duplo em meio a uma carreira que já tem um bom tempo e esta obra surge como o melhor que já fizeram, a certeza é de que estamos diante de uma banda, duo, grupo, com brilho e peculiaridades muito próprios. Se você ainda acredita na beleza dessa tal música pop do século 21, Beach House é caminho certo de ida sem volta. Ouça e ame.

 

Ouça primeiro: “Only Twice Melody”, “Superstar” e “Pink Funeral”

 

CEL

Carlos Eduardo Lima (CEL) é doutorando em História Social, jornalista especializado em cultura pop e editor-chefe da Célula Pop. Como crítico musical há mais de 20 anos, já trabalhou para o site Monkeybuzz e as revistas Rolling Stone Brasil e Rock Press. Acha que o mundo acabou no início dos anos 90, mas agora sabe que poucos e bons notaram. Ainda acredita que cacetadas da vida são essenciais para a produção da arte.

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