Os 20 Anos de The Man Who
Você pode não acreditar, mas houve um tempo – nem tão distante – em que as atenções do planeta se dividiam entre Coldplay e … Travis. Dois quartetos, o primeiro londrino, o segundo escocês, ambos filhotes do som tristonho e melancólico que o Radiohead construíra ao longo dos anos 1990, especialmente em seus dois primeiros discos, “Pablo Honey” e “The Bends”, e que havia chutado a milhas de distância com o terceiro, “OK Computer”. Esta era a sonoridade que se praticava na Inglaterra, no vácuo do britpop, que Blur e Oasis deixaram de lado por diferentes motivos. Na verdade, o Travis, liderado pelo vocalista e guitarrista Fran Healy, parecia mais credenciado para assumir o protagonismo e podemos dizer que, se o fez, foi com seu segundo álbum, “The Man Who”, lançado há 20 anos.
Se seguirmos pelo caminho da comparação com o Coldplay, que, na verdade, só surgiria para o sucesso na esteira de “The Man Who”, veremos que o Travis já era uma banda tarimbada. O primeiro disco, “Good Feeling”, de 1997, já tinha atrativos em quantidade razoável. Era um álbum mais enguitarrado, com canções mais pop e que se tornaram preferidas dos fãs, como “U-16 Girls”, a faixa-título ou “All I Want To Do Is Rock”, ou seja, o Travis empreendeu uma mudança em seu próprio som quando lançou “The Man Who”, em 1999. E foi isso – mais o Radiohead – que influenciou o Coldplay quando este veio com sua ótima estreia, “Parachutes”, em 2000. Entre os dois álbuns, o Travis teve seu momento de fama e visibilidade e o levou adiante, pelo menos, até depois do álbum seguinte, o ótimo “The Invisible Band”, de 2001.
Além do contexto sonoro inaugurado pelo segundo disco – rock de guitarras, canções tristes, vocais derramados – o Travis tinha – e tem, porque ainda está na ativa lançando bons discos – uma qualidade decisiva: compõe ótimas canções. Logo de cara, o ouvinte é arremessado numa linda viagem de guitarras e melodia, que caracterizam “Writing To Reach You”. Era uma credencial e tanto para abrir um álbum de uma banda promissora e da qual a imprensa e os fãs aguardavam tanto. Dá pra cravar que “The Man Who” ainda tem, pelo menos, mais três faixas sensacionais: “Driftwood”, com a melodia mais doce de toda a carreira da banda; “Why Does It Always Rain On Me?” e “Slide Show”, todas transformadas em single oportunamente, amplificando o efeito do disco. Mais que isso: ao trazer para a produção o respeitado Nigel Godrich, o produtor dos discos do Radiohead, a banda meio que clamava uma relação direta entre criador e criatura.
Como é de praxe nos nossos tempos, “The Man Who” está recebendo tratamento de luxo e sendo relançado para comemorar seu vigésimo aniversário. Os fãs não vão resistir ao pacote que a banda preparou: alem do disco remasterizado, há um CD apenas com os lados-B dos singles, algo que o Travis aprendeu a fazer com bandas como o Oasis, cujos singles noventistas são famosos e sensacionais. Sendo assim, há maravilhas por aqui, a destacar as covers de “Baby One More Time” (de Britney Spears), de “Be My Baby” (Ronettes), “River” (Joni Rivers), “The Weight” (The Band), além de versões ao vivo de “Slide Show” e “Driftwood”, registradas um tal de Link Cafe, em 1999. Fechando a tampa do pacotão, o ótimo show da banda em Glastonbury, em meados do mesmo ano, mostrando que, como dissemos, naquele tempo, o Travis tinha os proverbiais faca e queijo na mão.
Além do Coldplay, que jogava o mesmo jogo, o Travis também enfrentou a concorrência de gente distinta: em 2001, os Strokes viriam com seu “Is This It”, oferecendo uma nova via para o rock planetário, a do enxugamento, da ascendência punk, da diversão, deixando sob dúvida as melodias apaixonadas e trabalhadas que vinham da Inglaterra. Por algum tempo houve equilíbrio, mas logo os britânicos perderam projeção e, enquanto o Travis optou por manter intacta sua receita sonora – ficando com seus fãs mais fiéis – o Coldplay iniciou um processo de mudança em sua sonoridade, que resultou no que a banda é hoje, para o bem ou para o mal.
Este relançamento anabolizado é uma ótima chance para os novinhos e novinhas de plantão conhecerem a excelência do Travis e ver como o disco segue imune ao tempo e com seus atrativos ainda cheios de bossa. Uma belezura branda e convidativa, isso sim.
Carlos Eduardo Lima (CEL) é doutorando em História Social, jornalista especializado em cultura pop e editor-chefe da Célula Pop. Como crítico musical há mais de 20 anos, já trabalhou para o site Monkeybuzz e as revistas Rolling Stone Brasil e Rock Press. Acha que o mundo acabou no início dos anos 90, mas agora sabe que poucos e bons notaram. Ainda acredita que cacetadas da vida são essenciais para a produção da arte.