O Trem da Paz

 

Há quinze dias aconteceu o impressionante assassinato de 50 pessoas na mesquita de Al Noor, na cidade neozelandesa de Christchurch. O motivo? Intolerância religiosa, étnica, preconceito, incapacidade de convívio social. O assassino é um supremacista australiano de 28 anos, chamado Brenton Tarrant, que está preso e aguarda julgamento. No dia 28 de março ocorreu um concerto em Christchurch, com objetivo foi lembrar as vítimas desta chacina e reafirmar o compromisso formal da sociedade com a paz e o respeito às diferenças. Entre os artistas convidados para se apresentar, estava Cat Stevens, que há tempos é conhecido como Yusuf Islam.

Não por acaso, escrevo este pequeno texto em 31 de março, dia em que ocorreu a deposição do governo de João Goulart por tropas militares, configurando um ato violento de interrupção do processo democrático brasileiro e inaugurando um período ditatorial que durou 25 anos. Ao longo deste tempo, o país ficou mais desigual, menos plural, mais intolerante e incapaz de sustentar o diálogo político entre setores da sociedade. O governo, através de suas forças repressivas, perseguiu e aniquilou seus opositores dentro do território nacional – porque outros precisaram se exilar fora do país – e promoveu uma verdadeira caça a um inimigo inexistente: o brasileiro que discordava desta situação. Ao fim de 1972/73, não havia mais oposição dentro do país.

Yusuf/Cat Stevens estava no palco diante de uma multidão silenciosa. Não era um show de rock, festivo e celebratório, pelo contrário. Era a hora da música fazer seu papel de promover outro tipo de catarse, de reação. E Stevens sabe que sua obra é abarrotada de canções capazes disso. Acompanhado apenas de um contrabaixista e de seu violão, ele entoou uma de suas mais belas criações: “Peace Train”. É típico das pessoas mais elevadas conduzir o combate à violência com atitudes pacíficas. Aliás, é típico das religiões em sua origem e fundamento, é algo que poucos conseguem. O que aquele homem de cabeça branca, inglês de ascendência grega e muçulmano convertido há quatro décadas, estava pedindo era paz. Era a coexistência, a tolerância, o respeito às diferenças, sobretudo étnicas e religiosas. O assassinato das 50 pessoas na mesquita da cidade era a personificação da resistência do mundo a esta paz, a esta era de convívio. E isso está nos matando.

Sociedades, apesar do nome, são injustas por natureza. São pessoas ricas, menos ricas, remediadas, pobres e miseráveis vivendo num mesmo espaço geográfico, no qual os privilégios – como o nome já diz – pertencem a poucos. Este conceito pode ser aplicado ao mundo, em última instância, um espaço geográfico. Há países ricos, pessoas pobres e gente disposta a não aceitar quando essa gente menos privilegiada se manifesta. Podem ser imigrantes árabes num país branco – como a Nova Zelândia – podem ser manifestantes LGBT, negros, índios, idosos sem aposentadoria, no Brasil.

Não se compara em termos objetivos a chacina neozelandesa com a ditadura civil-militar brasileira e suas irmãs latino-americanas? Creio que não, pelo menos não de forma objetiva. Mas elas pertencem a um mesmo ato de uso da força desproporcional para subverter a ordem social.

A recente eleição de Jair Bolsonaro para a Presidência do Brasil trouxe de volta a certeza de que a sociedade brasileira não está disposta a esquecer a ditadura civil-militar, pelo contrário, há gente que quer celebrá-la. Aprendemos no estudo da História sobre a importância das narrativas e como elas são importantes para que possamos construir a melhor noção do passado e, desta forma, compreendê-lo. É uma característica do momento que vivemos, a disputa por estas memórias e os setores mais conservadores da sociedade sabem disso e têm feito de tudo para validar a ideia de que a intervenção militar de 1964 foi um ato em defesa do Brasil, que estava ameaçado por comunistas. Bem, o que João Goulart desejava fazer era diminuir as diferenças sociais e entre as regiões do país. Sua ideia era fortalecer o mercado nacional para que dependêssemos menos das importações e dos Estados Unidos. Sua política externa era de autonomia, buscando fazer o país ser visto como uma potência regional e não como uma área de influência norte-americana dentro da lógica da Guerra Fria. Tais visões são entendidas como tentativas de fazer o país repetir o exemplo de Cuba, 1959. Todos sabem – ou deveriam saber – que não se compara uma ilha com um país-continente tão complexo como o nosso. Esta é uma luta que está sendo travada agora, neste momento.

Voltando a Cat Stevens/Yusuf Islam no palco de Christchurch, cantando “Peace Train” diante daquela multidão silenciosa: foi um dos momentos mais tristes dos últimos tempos e me pareceu muito próximo da utopia. Os versos da canção, composta em 1971, acenam para a paz chegando a todos os lugares, metaforizada por um trem. Ele vai passando e levando todos que estão dispostos a embarcar, há lugar para todos. E o trem vai passando por vários lugares, pacificando-os imediatamente. Cat tinha 23 anos quando escreveu a letra e a melodia. Era um menino.

Hoje, com 70 anos de idade, ele segue no palco, com seu violão, cantando a mesma letra. Ao contrário de vários significados que vão e vêm na História, “Peace Train” ainda é a paz chegando entre todos, em toda parte.

A diferença é que a canção se tornou muito próxima de uma prece, uma oração, que poderia ser cantada em igrejas e mesquitas do mundo. A História está em movimento e nós a construimos diariamente. Estamos na luta. Pela paz.

CEL

Carlos Eduardo Lima (CEL) é doutorando em História Social, jornalista especializado em cultura pop e editor-chefe da Célula Pop. Como crítico musical há mais de 20 anos, já trabalhou para o site Monkeybuzz e as revistas Rolling Stone Brasil e Rock Press. Acha que o mundo acabou no início dos anos 90, mas agora sabe que poucos e bons notaram. Ainda acredita que cacetadas da vida são essenciais para a produção da arte.

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