O SUS e Grey’s Anatomy

 

Ontem vimos o segundo episódio da 16ª temporada de Grey’s Anatomy. É uma dessas séries que, quando parecem não ter mais pra onde ir, os roteiristas e produtores acham um jeito e, voilá, estamos vendo tudo de novo e prestando muita atenção. Ao longo dos anos, Grey’s assumiu uma postura política e engajada clara, empunhando bandeiras contra a violência doméstica (leia-se: contra as mulheres), o preconceito contra as minorias étnicas e LGBTQ+ e uma nítida postura anti-Trump, o que é algo sempre louvável. Se há algo dos Estados Unidos que o Brasil deveria copiar é a liberdade de expressão e a defesa dos valores democráticos. Lá não tem essa coisa de ser demitido por defender o ponto de vista contrário ao do empregador, como há por aqui. Lá você pode ser democrata e trabalhar numa empresa que pertença a um republicano. Não será demitido por isso.

 

Mas, se há algo que assusta na sociedade americana – bem, entre muitas coisas – é a falta de um sistema de saúde pública eficaz. Vamos tomar como exemplo o Grey Sloan Hospital, de Grey’s Anatomy. É um hospital-escola privado, localizado em Seattle, estado de Washington. É uma cidade grande, ainda que tenha menos habitantes que Nova Iguaçu, por volta dos 800 mil. Na periferia de Seattle estão as sedes da Amazon e da Microsoft, portanto, é uma área metropolitana considerável. O hospital atende à população com um serviço de emergência, no qual se passa grande parte da ação dos episódios, quando chegam pessoas com diferentes enfermidades ou vitimadas por acidentes dos mais variados tipos. Em todos os casos, TODOS, as pessoas precisam pagar pelos serviços prestados. Em alguns casos, elas têm plano de saúde, que os americanos chamam de seguro saúde. É a mesma coisa, eles pagam mensalidades altas e têm certa cobertura para procedimentos, variando de acordo com a complexidade. Se a pessoa precisar de um tratamento prolongado ou cirurgia de risco, um abraço, o seguro saúde não cobrirá.

 

Esta situação de desassistência dos pacientes já gerou vários episódios interessantes na série. Já vimos uma médica casando com paciente terminal só para que este pudesse ter direito ao seguro saúde. Já vimos médico falsificando prontuário para que o paciente pudesse ter acesso ao seguro. Já vimos médicos burlando prazos e datas para que alguém pudesse ter o tratamento digno. Já vimos médicos indo para a cadeia por fraudes. E já vimos dono de hospital falsificando toda a documentação do seguro para que um filho de imigrante pudesse ter tratamento contra câncer. Em todos os casos, a situação é clara: o tratamento de saúde nos Estados Unidos não é para todos, muito menos democrático. Se você não tiver dinheiro ou quem o ajude, fatalmente irá sentir na pele esta realidade do neoliberalismo.

 

Sabemos que o poder das séries de TV hoje é enorme. Em muitos casos, podemos dizer que elas substituíram a fidelização que o cinema proporcionava ao público. E as séries têm seus fãs ferrenhos, que antagonizam com outros, vá entender. O que importa é que elas são veículos poderosos para a transmissão de informações, tanto quanto os filmes. Você pode aproveitar seu tempo livre vendo “Rambo 4”, no qual todo ser humano de nacionalidade mexicana ou não-americana (dá no mesmo aqui) é, automaticamente vilão e merece morrer (e morre) cruelmente. Ou pode ver uma série produzida por mulheres engajadas – como Ellen Pompeo e Shonda Rimes – que procuram aproveitar seu tempo de visibilidade mandando mensagens importantes para a audiência. Neste caso é: a saúde precisa ser democratizada.

 

Os Estados Unidos não têm um SUS. Você já procurou saber como o SUS atua e o que ele tem feito de bom pelas pessoas? Tenho amigos de diferentes idades que já precisaram de seus serviços e não têm do que reclamar. É revoltante porque vivemos num país em que toda e qualquer gratuidade de serviços públicos está sob ataque. A ideia – referendada pela mídia – é: o que é privado é automaticamente bom. Se você precisa pagar, logo, será bom, à prova de corrupção e obrigatoriamente eficiente. Não é assim, acredite. Se o SUS e as universidades públicas – duas instâncias de serviço público sob ataque cerrado do atual governo – fossem ruins e desnecessárias, elas nem seriam notícias. Uma olhada rápida no ranking de melhores universidades do país mostrará que a maioria esmagadora delas é pública. É algo que os americanos também não desfrutam: ensino público gratuito. Não por acaso, a subserviência do Brasil ao sistema financeiro internacional e aos Estados Unidos, coloca em risco total esses benefícios por aqui.

 

Se você conhece Grey’s Anatomy, sabe do que estou falando. A temporada vigente começou com uma importante personagem da série afastada de suas funções profissionais e prestando serviço comunitário porque está sob investigação por fraude contra o seguro saúde, visando proporcionar um tratamento complexo a uma criança cujos pais têm vários empregos e, mesmo assim, não conseguem pagar pelo serviço. Se lá tivesse um SUS, provavelmente a paciente seria direcionada para um hospital especializado e tratada. Procure saber sobre o SUS antes de atacá-lo. É simples. E preste atenção nas mensagens que surgem por aí. Elas são importantes.

CEL

Carlos Eduardo Lima (CEL) é doutorando em História Social, jornalista especializado em cultura pop e editor-chefe da Célula Pop. Como crítico musical há mais de 20 anos, já trabalhou para o site Monkeybuzz e as revistas Rolling Stone Brasil e Rock Press. Acha que o mundo acabou no início dos anos 90, mas agora sabe que poucos e bons notaram. Ainda acredita que cacetadas da vida são essenciais para a produção da arte.

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