O discaço de 1995 de João Marcello Bôscoli

 

 

Em 1995, eu e meu amigo-irmão, Leonardo Salomão, apresentávamos um programa na Quarup FM, uma rádio comunitária de Duque de Caxias, no Grande Rio. Jovens que éramos, não nos incomodávamos em fazer o programa todo domingo, às 10 horas da manhã, o que nos obrigava a sair do Grajaú – Zona Norte do Rio – por volta de oito da matina, ir até a Central do Brasil e pegar um outro coletivo até Caxias. Isso significava dormir na casa do Léo toda noite de sábado, abdicando de qualquer outra programação.

 

 

 

Mas a recompensa era certa: Os Argonautas, nosso programa, durou cerca de um ano, com uma audiência pequena, mas fiel, chegando até a ser noticiado na maravilhosa Rio Fanzine, uma coluna que existia no O Globo, tocada por Tom Leão e  pelo mestre máximo, Carlos Albuquerque.

 

Pois bem, recorrer aos Argonautas é importante neste texto porque a gente esperou um bom tempo para por nossas mãos no primeiro disco do João Marcello Bôscoli, intitulado “João Marcello Bôscoli & Cia.”, lançado naquele 1995 pela Sony Music. Antes do CD chegar às lojas, várias notícias e boatos antecipavam sua chegada, muito por conta de João ser o filho mais velho de Elis Regina, o primeiro a tentar a carreira artística, sendo seguido por Pedro Mariano e Maria Rita, nesta ordem, poucos anos depois. O que importa aqui é dizer em alto e bom som que esta sua estreia, ocorrida dois anos antes da fundação da gravadora Trama, é sensacional e merece revisita urgente.

 

Neste álbum, muito mais um trabalho de produtor do que qualquer outra coisa, João abre espaço para todo o time que gravaria discos pela Trama a partir do fim dos anos 1990. Estão aqui: Max de Castro, Wilson Simoninha, Claudio Zoli, Pedro Mariano, além de participações legais de Daniel Carlomagno, Arnaldo Antunes, Milton Nascimento e César Camargo Mariano, que, juntos, formam um timaço de artistas em busca de uma tal de “música pop brasileira”. Sabemos que esse conceito mudou com o tempo – e ainda mudará muito – mas, naquele tempo, significava misturar as origens dos envolvidos (além de Pedro e João, Max e Simoninha são filhos de Wilson Simonal) com a música pop planetária daquele tempo, especialmente o que dizia respeito ao funk e ao r&b americano. Sendo assim, o que sai das faixas deste primeiro disco é uma boa mistureba de tempos, origens e influências, com o inegável sabor de seu tempo, ou seja, nada aqui tem cheiro de naftalina ou se excede pela busca da nostalgia. Pelo contrário, a produção de João e sua turma sabe bem dosar no tempo e no espaço, com uma cara de novidade.

 

A MTV Brasil recebeu com braços abertos a chegada do álbum. Logo o clipe da ótima “Flor do Futuro”, lenta e rápida ao mesmo tempo, cheia de bossa e cantada por Simoninha e Zoli, chegou à emissora e fez sucesso. Além disso, a divulgação da Sony incluiu um curta sobre as gravações, mostrando e apresentando a trupe de João Marcello no estúdio e dando nome àqueles novíssimos bois. Além deles, que assinaram canções, arranjos e execução, temos canções que vieram de nomes como Lenine (a ótima “Acredite Ou Não”), Jorge Ben (“Essa Menina”) e duas covers: “Como Nossos Pais”, original de Belchior, mas famosíssima pela interpretação de Elis Regina e “Noite do Prazer”, do Brylho, com Pedro Mariano nos vocais e Zoli, repetindo sua participação no original, de 1983.

 

O talento de Max de Castro e Simoninha brilham na frente de todo mundo. Os filhos de Simonal têm carreiras sólidas como cantores e compositores, sendo que Max conseguiu produzir uma obra-prima incontestável com sua estreia, “Samba Raro”, de 1999, combinando bem com a cara da gravadora Trama, que funcionou por um tempo curto demais, mas abriu espaço para novos talentos, lançou álbuns alternativos americanos e ingleses, deu voz à música eletrônica brasileira e, cereja do bolo, abriu o memorável portal Trama Virtual, que recebeu e expôs o trabalho de um sem-número de artistas brasileiros via streaming num tempo em que essa tecnologia era ficção científica. Mesmo que o álbum de João Marcello tenha surgido antes da existência de sua própria gravadora, saindo pela Sony, ele o reeditou via Trama em 2003, trazendo este filho primogênito para sua cara legítima.

 

Hoje, 27 inacreditáveis anos depois, “João Marcello Bôscoli & Cia” não tem rugas e marca um dos raros momentos em que músicos, produtores, cantores, poetas e artístas fizeram uma empreitada que visava algo novo na música nacional, procurando estabelecer padrões e redefinir parâmetros. Este álbum antecipa muita coisa e tem generosos momentos de virtuosismo, que ficaram cristalizados naquele ótimo 1995. Redescubra-o.

 

Em tempo: “Acredite Ou Não” e “Flor do Futuro” chegaram a ser tocadas nos Argonautas, direto de Caxias, via Quarup FM.

 

 

 

CEL

Carlos Eduardo Lima (CEL) é doutorando em História Social, jornalista especializado em cultura pop e editor-chefe da Célula Pop. Como crítico musical há mais de 20 anos, já trabalhou para o site Monkeybuzz e as revistas Rolling Stone Brasil e Rock Press. Acha que o mundo acabou no início dos anos 90, mas agora sabe que poucos e bons notaram. Ainda acredita que cacetadas da vida são essenciais para a produção da arte.

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