“Ninguém” – Arnaldo Antunes, há 30 anos
“Sobre este disco, sinto que ele avança o somtexto, a poemúsica, em seu curso de águas cristalturvas, desde lá, do figurativismo clássico, ao concretismo, ao expressionismo (fenomenológico existencialista?), rumo a todas as estações de rádio! Hermético? Talvez”. As palavras são de Gilberto Gil no texto do release para o álbum Ninguém, o segundo na carreira solo de Arnaldo Antunes, lançado em maio de 1995.
Só que as estações de rádio praticamente ignoraram Ninguém, como ocorrera com o seu antecessor, Nome (1993) – ambos aos cuidados da BMG. Aliás, a descrição de Gil parece até se adequar mais ao primeiro álbum, marcado pelo experimentalismo sonoro e oferecido em três versões (músicas, vídeos e livro). Ninguém é muito mais pop.
Mas um álbum deriva diretamente do outro. O ponto de junção entre projetos tão diferentes é a banda formada para os shows do Nome. Edgar Scandurra (guitarra), Paulo Tatit (baixo), Peter Price (percussão) e Zaba Moreau (teclado) haviam participado das gravações do primeiro álbum, mas não como uma banda, uma vez que cada faixa teve um tratamento singular. Os shows tiveram outra concepção, agregando o baterista Pedro Ito.
Com esse time de colaboradores, foram surgindo as faixas de Ninguém. No primeiro semestre de 1994, nove já apareciam em shows. Algumas músicas vieram da época dos Titãs, outras até mesmo antes disso. O álbum compilou 16 faixas, gravadas no estúdio Mosh, em São Paulo, entre novembro de 1994 e janeiro de 1995.
A produção foi assumida por Liminha, que Arnaldo conhecia muito bem do trabalho com os Titãs. Essa é uma das razões para o resultado mais pop. Outra é a colaboração com Scandurra, a quem devemos creditar as muitas guitarras roqueiras em Ninguém, onde ele assina, em parceria, a composição de 5 faixas. O Ira! estava dando um tempo, depois de Música Calma para Pessoas Nervosas (1993), e só retomaria os trabalhos em meados de 1995. O interregno facilitou a aproximação entre Arnaldo e Scandurra, que também deixou marcas em Benzina (1996), segundo álbum solo do guitarrista.
Se Ninguém é mais pop que Nome, não quer dizer que abandone o experimentalismo – uma marca na carreira de Arnaldo. O álbum de 1995 mostra o artista fazendo novamente rock, mas não apenas. E o que é rock vem com temperos que o inserem na história da MPB, ou dos gêneros que colaboraram para constituí-la, como o samba e a bossa nova. A percussão tem papel fundamental.
À sua maneira, Arnaldo participava da produção das misturas que marcam o rock brasileiro da década de 90. Em contraste com bandas da nova geração, as raízes eram menos nítidas ou específicas. Em uma entrevista para a Bizz de maio de 1995, o artista, para definir o trabalho que então lançava, preferiu rotulá-lo como “inclassificável”.
Uma pessoa
Ao menos duas faixas trazem para Ninguém o tema dominante de Nome: a linguagem. A sonoramente trepidante “O Nome Disso” completa seus versos com muitas respostas. Em sua sucessão, elas nos fazem pensar nas artimanhas da linguagem, tão arbitrária em sua forma de chamar as coisas e ao mesmo tempo aparentemente tão natural. Nos shows, Arnaldo segurava um globo terrestre, girando-o para fazer variar as respostas à pergunta que vinha da boca de sua filha: “como é que chama o nome disso?”.
Em “Quero”, apenas cinco palavras formam a letra. Mas o que conta aqui é a sua repetição, com uma inversão na ordem das duas estrofes. O ritmo quase industrial, variando seus andamentos, acrescenta uma tensão a essas repetições. Embora a música termine com a mesma palavra com que começou, algo aconteceu pelo poder do som (inclusive das palavras).
Essas faixas reiteram as posições filosóficas apresentadas em Nome: a linguagem é nossa prisão e nossa salvação. Quando a usamos, percebemos que “as coisas não têm paz” (verso de um poema de Arnaldo). Essa inquietude transfere-se para Ninguém a fim de mexer com outro tema, o da identidade.
A faixa título e número 1 do álbum usa muitas palavras para anunciar esse tema. Ser uma pessoa e ser ninguém se digladiam na letra embalada pelo pulso do baixo. Quando a guitarra toma a frente, duas estrofes se contrapõem: uma com ausências e outra com coisas que produzem uma pessoa.
A capa do álbum dialoga diretamente com a letra de “Ninguém”: um rosto de muitos órgãos forma um esquisito retrato humano. As colagens que preenchem o encarte, também criações de Arnaldo e Zaba, vão na mesma direção, agora usando imagens de cada um dos integrantes da banda, cercadas de nomes aleatórios.
“Consciência” prossegue com o tema: “o cabelo o pelo a pele a perna o braço a carne o sangue pensa.” Jorge Mautner contribui lendo um trecho da famosa carta de Pêro Vaz de Caminha. Raivosamente, a voz de Arnaldo completa as guitarras cheias de Edgard: a consciência depende da consistência dos materiais que são ou servem ao corpo.
O corpo volta a aparecer em “Nem Tudo”, com muito groovy. Agora, a propósito de como se cuida dele, com coisas como escova de dentes e lentes de contato. A letra é também uma espécie de manifesto anti-propriedade: “nem tudo que se tem se usa / nem tudo que se usa se tem”. A composição é uma parceria com Toni Bellotto, em algum momento da história dos Titãs.
Outra da época dos Titãs, “Fora de Si” celebra os momentos em que nos ausentamos de nós mesmos. A própria linguagem fica transtornada: “eu fica bem assim / eu fico sem ninguém em mim”. Arnaldo toca violão nessa música, dando o tom para uma toada obsessiva e nervosa.
“Minha meu” novamente usa apenas cinco palavras acompanhadas dos pronomes possessivos que dão título à música. Mudanças em uma letra servem para alterar e confundir sentidos: pé mão pai mãe pau. O ritmo é frenético. Nos shows, Arnaldo tinha que ler os versos para conseguir cantá-los.
“Inspirado” destoa das demais ao se aproximar do mundo animal, algo em que Nome é pródigo. Mas não deixa de discorrer sobre a identidade. O narrador entra no couro de um boi, “esperando amor no matadouro”. Tatit junta-se à Scandurra nas guitarras, que dão o tom à música.
“Budismo Moderno” foi considerada por críticos uma bossa noise, com Scandurra emulando o estilo de Arto Lindsay (que participou do primeiro álbum). A letra segue os versos, angustiados entre a dissolução e a permanência, de Augusto dos Anjos, poeta que em 1912 publicou um livro cujo título não poderia ser mais apropriado para Ninguém: Eu. Nas mãos de Arnaldo, a canção já existia desde o início dos anos 80.
“Ninguém no Carnaval” encerra o álbum e a sucessão de faixas que trabalham o seu tema central. Em Nome, “Carnaval” promove a transmutação das coisas. Em Ninguém, o carnaval é quando “ninguém é de ninguém” / “todo mundo é de todo mundo”. Arnaldo grita “eu sou uma pessoa”, citando a letra da faixa inicial.
“Ninguém no Carnaval” teve tratamento especial, concluída no estúdio de Liminha no Rio de Janeiro. O produtor participa fazendo programações eletrônicas em algumas faixas, mas nesta dobra a guitarra de Scandurra e acrescenta um baixo hipnótico. A voz de Arnaldo, trabalhada por efeitos, torna-se um instrumento a mais.
A outra bossa noise do álbum é “Alegria”, esta com uma percussão forte. Nesse caso, o narrador sai de si para prometer algo a alguém: “a tristeza é uma forma de egoísmo / eu vou te dar eu vou te dar eu vou te dar”.
O registro amoroso volta a se manifestar em “O Seu Olhar”, uma das duas parcerias de composição com Paulo Tatit. Sobre uma base delicada, Arnaldo e Zaba fazem um dueto: “o seu olhar melhora o meu”.
O mesmo tema está no centro de “Judiaria”, agora com sinal invertido: “agora quando eu estou melhorando / você me aparece pra me aborrecer”. É uma versão do samba canção de Lupicínio Rodrigues, transformado em um rock de andamento quebrado, inspiradíssimo. Pouco antes, Tetê Espíndola tinha incluído outra versão, em companhia de Arrigo Barnabé, em seu álbum Só Tetê (1994).
As três faixas restantes preocupam-se com outros temas. No caso de “No Fundo” e de “Lugar Comum”, trata-se do espaço. Na primeira, o violão de Scandurra lembra algumas baladas do Ira! Já “Lugar Comum” é uma versão da composição de Gilberto Gil e João Donato, gravada por este em 1975. A bossa eletrônica transmuta-se em psicodelia percussiva.
“Tempo” anuncia no título o seu tema, com seus primeiros versos conectando-se com a questão central de Ninguém: “será que a cabeça tem o mesmo tempo que a mão? / o tempo do pensamento, o tempo da ação”. É outra composição antiga, em parceria com Paulo Miklos, que chegou a ser gravada por Sandra de Sá, acompanhada dos Titãs, em 1988.
A comparação entre as duas versões remete a paisagens sonoras bem distintas. Mesmo com o suingue de Sandra, a versão de 1988 poderia estar ao lado das faixas de Jesus Não Tem Dentes… (1987) e ninguém duvidava que se tratava de rock. Já a versão de Arnaldo é essencialmente percussiva – nas seis mãos de Ito, Tatit e Price. Scandurra contribui com um riff marcante. Timbres eletrônicos que percorrem o álbum todo estão também presentes aqui, ao lado de uma colagem cacofônica de transmissões radiofônicas. E aí: isso é rock, é samba, ou alguma coisa inclassificável?
Somtextos e poemúsicas
É curioso como nenhuma faixa de Ninguém se tornou um hit… As letras seriam complicadas demais? Ter sons inclassificáveis não favoreceu? Talvez o conservadorismo no meio roqueiro não seja um fato apenas do presente…
O fato de nenhum videoclipe ter acompanhado o álbum pode não ter ajudado. Anos depois, em 2001, “Fora de Si” recebeu um como parte da promoção do filme O Bicho de Sete Cabeças (2000). A trilha sonora da produção usa seis músicas de Arnaldo, sendo três oriundas de Ninguém.
A banda fez shows em algumas cidades brasileiras. Os cenários foram elaborados por Nuno Ramos e Gualter Pupo com elementos simples, como plásticos. O repertório das apresentações incluía versões para “Ciúme do Perfume” (de Itamar Assumpção) e “Volte para o Seu Lar” (do próprio Arnaldo, gravada por Marisa Monte em Mais).
Em junho de 1996, com a mesma banda (com exceção de Price), Arnaldo gravaria o sucessor de Ninguém, O Silêncio. Em 1998, seria a vez de Um Som, já com vários acréscimos nos músicos de apoio. A década seguinte seria aberta com Paradeiro (2001), que inaugura outra fase da carreira do artista, em sintonia com o projeto d’Os Tribalistas.
Voltemos para 1994, ano da gravação de Ninguém, e veremos Arnaldo escrevendo um release para o álbum de Dorival Caymmi, um artigo sobre Tunga, o prefácio para um livro póstumo de Paulo Leminski, etc. E também metendo-se em uma polêmica nos jornais a propósito da poesia concretista – textos compilados em 40 Escritos.
Vale lembrar que Arnaldo é um poeta assumido. Sua música, desde a participação nos Titãs, tem relação direta com sua obra de poesia, que por sua vez se alimenta da tradição das letras da música popular brasileira. Seu estilo de poesia, sendo concretista, não dissocia a palavra de sua materialidade (sonora e/ou gráfica), o que estabelece um fértil canal de tradução entre texto e música.
Ninguém deixa marcas em Dois ou + Corpos no Mesmo Espaço (1997), que inclui o texto de “O Seu Olhar”. Pelo livro, ficamos sabendo que “Quero” foi originalmente uma instalação com cartazes que distribuíam as palavras em várias camadas sobrepostas. Aliás, a publicação inclui um CD no qual alguns dos poemas são vozificados (pois Arnaldo não apenas declama, mas extrai musicalidade dos versos).
Em Ninguém, mesmo que não seja tão explícito quanto em Nome, o que temos são somtextos e poemúsicas. E não há nada de hermético nisso. Os sons, explorando as direções abertas ao pop naquela altura, são experimentos da linguagem, nos instigando a pensar sobre o que seriam pessoas e também a chacoalhar nosso esqueleto.
Em 1995, em uma entrevista ao jornal Zero Hora, Arnaldo declarou: “Poesia, para mim, é o momento em que a linguagem não está mais dizendo alguma coisa, mas está sendo aquilo que diz”. Em Ninguém, arrisco dizer, essa poesia transmutada em música atingiu o melhor equilíbrio entre a fruição e a reflexão. Quem não gostar, boa pessoa não é.

Emerson G curte ler e escrever sobre música, especialmente rock. Sua formação é em antropologia embalada por “bons sons”, para citar o reverendo Fábio Massari. Outra citação que assina embaixo: “sem música, a vida seria um erro” (F. Nietzsche).