Marcos Valle olha para futuro e passado em novo disco
Marcos Valle – Túnel Acústico
61′, 13 faixas
(Far Out Recordings)
Está escrito no perfil de Marcos Valle no site Bandcamp: “O Homem da Renascença do pop brasileiro, Marcos Valle é um dos maiores e mais importantes compositores, arranjadores e intérpretes na história do Brasil”. Não há um pingo de exagero nesta apresentação e ela dá um pouco da dimensão do reconhecimento que Marcos tem no exterior. Sua carreira tem vários períodos, idas, vindas, reinvenções e segue marcada por um desejo incontrolável de seguir produzindo e gravando. De 2019 para cá, ele gravou dois álbuns, “Sempre” e “Cinzento”, (ambos resenhados aqui, além de uma entrevista que fizemos naquele ano) e, entre shows e turnês mundiais, temos agora o terceiro álbum desta fase recente, “Túnel Acústico”, lançado pelo selo inglês Far Out Recordings. Mais que um simples “disco de carreira”, este que é o vigésimo terceiro trabalho de Marcos Valle, tem, digamos, um “molho” extra: duas faixas de outro tempo, mais precisamente, da segunda metade dos anos 1970, época em que o artista estava em Los Angeles para poder criar e trabalhar longe do obscurantismo da ditadura civil-militar brasileira. Estas duas canções temperam as outras faixas de “Túnel”, que evocam a persona jazz bossa que Marcos construiu ao longo do tempo. Senão vejamos.
Assim como os dois álbuns anteriores a ele, “Túnel Acústico” tem em mente a variação setentista da persona musical de Marcos, especialmente aquela que ele desenvolveu nos Estados Unidos, com alguma interseção com a soul music daquele tempo. Não por acaso, o grande cantor e compositor Leon Ware foi seu parceiro em várias composições daquele tempo, entre elas, “Bicho no Cio” e “Estrelar”, que Valle registrou em seus álbuns do início dos anos 1980. O próprio Ware teve sua musicalidade afetada por essas colaborações e seus álbuns “Rockin’ You Eternally” (1981) e “Leon Ware” (1982) são provas inegáveis disso. O fato é que “Túnel Acústico” resgata “Feels So Good”, que estava até agora inédita e cuja demo – com vocais de Valle e Ware – foi encontrada num armário. Após trabalho em estúdio, comandado pelo produtor Daniel Maunick, surge o primeiro registro da canção com os vocais de Ware preservados e recuperados após quarenta e quatro anos. Além dela, “Life Is What It Is”, composta em parceria com o percussionista Laudir de Oliveira, surge em uma versão solar e irresistível. A canção já havia sido gravada em 1979 pelo grupo Chicago, no qual Laudir tocava na época, no álbum “Chicago 13”.
Mesmo com resgates e revelações dessa magnitude, “Túnel Acústico” tem seu quinhão generoso de composições recentes de Marcos. Acompanhado no estúdio por bambas como Jessé Sadoc, Paulinho Guitarra e dois terços do Azymuth, Alex Malheiros e Renato Massa, ele passeia facilmente por várias melodias e construções adoráveis e capazes de remeter imediatamente à visão jazz funk de Brasil perfeito da virada dos anos 1970/80, que foi tão bem sucedida em seu tempo e que foi objeto de culto pelas mãos de DJs ingleses nos anos 1990, fato que levou tanto o Azymuth quanto o próprio Valle a integrar o elenco da gravadora Far Out Recordings, surgida naquela década com especial atenção para esta produção pop brasileira, tristemente esquecida por aqui. Mas “Túnel” não se restringe a essa musicalidade, mostrando que Valle não está fazendo um álbum meramente revisionista. Há, por exemplo, muito de samba nas faixas presentes aqui, algumas delas instrumentais.
A quantidade de ótimas canções é imensa. Logo na abertura, o samba “Todo Dia Santo” já mostra exuberância no arranjo e uma certeza estética que apenas os grandes mestres têm. “Assim Não Dá” vai pelo mesmo caminho ensolarado, misturando bossa e jazz ao tronco principal do samba praieiro carioca sessentista. Já em “Para de Fazer Besteira’, o clima é totalmente samba jazz, com instrumental perfeito e letra cadenciada que evoca uma tradição vocal que vai até o início dos anos 1960. Em “Palavras Tão Gentis”, Valle canta letra composta por Moreno Veloso e em “Bora Meu Bem”, ele dá voz aos versos escritos por Joyce Moreno: “Bora refazer o que se destruiu / Bora recriar o que se prometeu / Bora retomar do ponto em que partiu”. Em “Não Sei”, a parceria é com a cantora paulistana Céu e na ótima “Tem Que Ser Feliz”, seu parceiro mais constante, o irmão Paulo Sérgio Valle, assina a letra. E a cereja do bolo fica por conta da maravilhosa homenagem ao grande Burt Bacharach, em “Thank you, Burt (For Bacharach)”, uma reverência à obra de um dos maiores artistas de todos os tempos.
“Túnel Acústico” é uma lindeza de vários tempos, lugares e sons. É o resultado da genialidade de um artista que segue produtivo aos 81 anos e não dá qualquer sinal de envelhecimento ou acomodação. Sensacional é pouco.
Ouça primeiro: o álbum todo.
Carlos Eduardo Lima (CEL) é doutorando em História Social, jornalista especializado em cultura pop e editor-chefe da Célula Pop. Como crítico musical há mais de 20 anos, já trabalhou para o site Monkeybuzz e as revistas Rolling Stone Brasil e Rock Press. Acha que o mundo acabou no início dos anos 90, mas agora sabe que poucos e bons notaram. Ainda acredita que cacetadas da vida são essenciais para a produção da arte.