Gilberto Gil x Regina Duarte
Com o “sim” de Regina Duarte para assumir a secretaria especial de Cultura do atual governo, completa-se uma profecia nunca divulgada. Se alguém me dissesse que a atriz global de 72 anos desempenharia tal função, eu não acreditaria e, provavelmente, riria do “profeta”. Os tempos atuais têm sido pródigos em quebrar paradigmas do outrora impossível/improvável. Regina, uma senhora conservadora e ligada ao PSDB, irá, de fato, comandar as políticas públicas em relação à cultura. Se pensarmos no que é o atual governo de fato, veremos que, não só faz todo o sentido, como ela irá representar muito bem o atual presidente, seus filhos, seus apoiadores e eleitores/ausentes da votação.
Regina é uma atriz com trajetória extensa. Foi eleita “namoradinha do Brasil” nos tempos da ditadura e protagonizou várias novelas e séries televisivas de sucesso. É um dos rostos de uma “era de ouro” da TV brasileira pós-militares no poder, ou seja, marcada pelo crescente protagonismo da rede globo. Sua participação em obras como “Selva de Pedra”, “Malu Mulher”, Roque Santeiro” e “Vale Tudo”, marcaram o rosto e o jeito de Regina nas nossas mentes. Como ativista política, ela sempre esteve próxima do PSDB paulista. Sua mais notável participação se deu em 2002, quando surgiu na propaganda política do partido, que disputava as eleições presidenciais contra o PT, dizendo que “tinha medo”. Era basicamente a mesma estratégia que FHC, então na Presidência, havia iniciado, ao provocar medo do mercado e da sociedade civil diante da iminente vitória de Lula. Subiram dólar e inflação, turbinados em parte pelo “eu tenho medo” da atriz, que alardeava – usando de todos os recursos interpretativos – um quase-apocalipse a se instalar se Lula vencesse. Não aconteceu, Lula chegou à Presidência e, num movimento revolucionário, escolheu Gilberto Gil como Ministro da Cultura.
Por conta do inadmissível episódio do ex-secretário da cultura, roberto alvim (sobre o qual falamos aqui), Gil publicou em suas redes sociais o discurso que fez quando tomou posse em 2003. Sua escolha para a pasta da Cultura era uma amostra do quão inovadora era a proposta de Lula e seu governo, que marcaram o início de tempos prósperos e com ênfase no social, a partir da implantação de vários programas visando diminuir a desigualdade econômica no país. Gil declarou, por conta da postagem de seu antigo discurso, que o estado não deve fazer cultura, mas garantir o acesso democrático do maior número de pessoas aos bens simbólicos.
Em tempos de acirramento, as redes sociais foram tomadas por comparações entre Gil e Regina Duarte, algo que tentamos aclarar com este texto, republicando seu discurso de 2003. Tirem suas próprias conclusões, tendo em mente que a atriz publica frases como “a liberdade de expressão tem que ter limites” em suas redes e parece não ter qualquer problema em assumir a pasta num governo que não se opõe à censura, ao preconceito, à simpatia com a truculência e é composto por pessoas que parecem absolutamente despreparadas.
Com a palavra, Gil.
“A eleição de Luiz Inácio Lula da Silva foi a mais eloqüente manifestação da nação brasileira pela necessidade e pela urgência da mudança. Não por uma mudança superficial ou meramente tática no xadrez de nossas possibilidades nacionais. Mas por uma mudança estratégica e essencial, que mergulhe fundo no corpo e no espírito do país. O ministro da Cultura entende assim o recado enviado pelos brasileiros, através da consagração popular do nome de um trabalhador, do nome de um brasileiro profundo, simples e direto, de um brasileiro identificado por cada um de nós como um seu igual, como um companheiro.
É também nesse horizonte que entendo o desejo do presidente Lula de que eu assuma o Ministério da Cultura. Escolha prática, mas também simbólica, de um homem do povo como ele. De um homem que se engajou num sonho geracional de transformação do país, de um negromestiço empenhado nas movimentações de sua gente, de um artista que nasceu dos solos mais generosos de nossa cultura popular e que, como o seu povo, jamais abriu mão da aventura, do fascínio e do desafio do novo. E é por isso mesmo que assumo, como uma das minhas tarefas centrais, aqui, tirar o Ministério da Cultura da distância em que ele se encontra, hoje, do dia-a-dia dos brasileiros.
Que quero o Ministério presente em todos os cantos e recantos de nosso País. Que quero que esta aqui seja a casa de todos os que pensam e fazem o Brasil. Que seja, realmente, a casa da cultura brasileira.
E o que entendo por cultura vai muito além do âmbito restrito e restritivo das concepções acadêmicas, ou dos ritos e da liturgia de uma suposta “classe artística e intelectual”. Cultura, como alguém já disse, não é apenas “uma espécie de ignorância que distingue os estudiosos”. Nem somente o que se produz no âmbito das formas canonizadas pelos códigos ocidentais, com as suas hierarquias suspeitas. Do mesmo modo, ninguém aqui vai me ouvir pronunciar a palavra “folclore”. Os vínculos entre o conceito erudito de “folclore” e a discriminação cultural são mais do que estreitos. São íntimos. “Folclore” é tudo aquilo que não se enquadrando, por sua antigüidade, no panorama da cultura de massa é produzido por gente inculta, por “primitivos contemporâneos”, como uma espécie de enclave simbólico, historicamente atrasado, no mundo atual. Os ensinamentos de Lina Bo Bardi me preveniram definitivamente contra essa armadilha. Não existe “folclore” o que existe é cultura.
Cultura como tudo aquilo que, no uso de qualquer coisa, se manifesta para além do mero valor de uso. Cultura como aquilo que, em cada objeto que produzimos, transcende o meramente técnico. Cultura como usina de símbolos de um povo. Cultura como conjunto de signos de cada comunidade e de toda a nação. Cultura como o sentido de nossos atos, a soma de nossos gestos, o senso de nossos jeitos.
Desta perspectiva, as ações do Ministério da Cultura deverão ser entendidas como exercícios de antropologia aplicada. O Ministério deve ser como uma luz que revela, no passado e no presente, as coisas e os signos que fizeram e fazem, do Brasil, o Brasil. Assim, o selo da cultura, o foco da cultura, será colocado em todos os aspectos que a revelem e expressem, para que possamos tecer o fio que os unem.
Não cabe ao Estado fazer cultura, mas, sim, criar condições de acesso universal aos bens simbólicos. Não cabe ao Estado fazer cultura, mas, sim, proporcionar condições necessárias para a criação e a produção de bens culturais, sejam eles artefatos ou mentefatos. Não cabe ao Estado fazer cultura, mas, sim, promover o desenvolvimento cultural geral da sociedade. Porque o acesso à cultura é um direito básico de cidadania, assim como o direito à educação, à saúde, à vida num meio ambiente saudável. Porque, ao investir nas condições de criação e produção, estaremos tomando uma iniciativa de conseqüências imprevisíveis, mas certamente brilhantes e profundas já que a criatividade popular brasileira, dos primeiros tempos coloniais aos dias de hoje, foi sempre muito além do que permitiam as condições educacionais, sociais e econômicas de nossa existência. Na verdade, o Estado nunca esteve à altura do fazer de nosso povo, nos mais variados ramos da grande árvore da criação simbólica brasileira.
É preciso ter humildade, portanto. Mas, ao mesmo tempo, o Estado não deve deixar de agir. Não deve optar pela omissão. Não deve atirar fora de seus ombros a responsabilidade pela formulação e execução de políticas públicas, apostando todas as suas fichas em mecanismos fiscais e assim entregando a política cultural aos ventos, aos sabores e aos caprichos do deus-mercado. É claro que as leis e os mecanismos de incentivos fiscais são da maior importância. Mas o mercado não é tudo. Não será nunca. Sabemos muito bem que em matéria de cultura, assim como em saúde e educação, é preciso examinar e corrigir distorções inerentes à lógica do mercado que é sempre regida, em última análise, pela lei do mais forte. Sabemos que é preciso, em muitos casos, ir além do imediatismo, da visão de curto alcance, da estreiteza, das insuficiências e mesmo da ignorância dos agentes mercadológicos. Sabemos que é preciso suprir as nossas grandes e fundamentais carências.
O Ministério não pode, portanto, ser apenas uma caixa de repasse de verbas para uma clientela preferencial. Tenho, então, de fazer a ressalva: não cabe ao Estado fazer cultura, a não ser num sentido muito específico e inevitável. No sentido de que formular políticas públicas para a cultura é, também, produzir cultura. No sentido de que toda política cultural faz parte da cultura política de uma sociedade e de um povo, num determinado momento de sua existência. No sentido de que toda política cultural não pode deixar nunca de expressar aspectos essenciais da cultura desse mesmo povo. Mas, também, no sentido de que é preciso intervir. Não segundo a cartilha do velho modelo estatizante, mas para clarear caminhos, abrir clareiras, estimular, abrigar. Para fazer uma espécie de “do-in” antropológico, massageando pontos vitais, mas momentaneamente desprezados ou adormecidos, do corpo cultural do país. Enfim, para avivar o velho e atiçar o novo. Porque a cultura brasileira não pode ser pensada fora desse jogo, dessa dialética permanente entre a tradição e a invenção, numa encruzilhada de matrizes milenares e informações e tecnologias de ponta.
Logo, não se trata somente de expressar, refletir, espelhar. As políticas públicas para a cultura devem ser encaradas, também, como intervenções, como estradas reais e vicinais, como caminhos necessários, como atalhos urgentes. Em suma, como intervenções criativas no campo do real histórico e social. Daí que a política cultural deste Ministério, a política cultural do Governo Lula, a partir deste momento, deste instante, passa a ser vista como parte do projeto geral de construção de uma nova hegemonia em nosso País. Como parte do projeto geral de construção de uma nação realmente democrática, plural e tolerante. Como parte e essência de um projeto consistente e criativo de radicalidade social. Como parte e essência da construção de um Brasil de todos.
Penso, aliás, que o presidente Lula está certo quando diz que a onda atual de violência, que ameaça destruir valores essenciais da formação de nosso povo, não deve ser creditada automaticamente na conta da pobreza. Sempre tivemos pobreza no Brasil, mas nunca a violência foi tanta como hoje. E esta violência vem das desigualdades sociais. Mesmo porque sabemos que o que aumentou no Brasil, nessas últimas décadas, não foi exatamente a pobreza ou a miséria. A pobreza até que diminuiu um pouco, como as estatísticas mostram. Mas, ao mesmo tempo, o Brasil se tornou um dos países mais desiguais do mundo. Um país que possui talvez a pior distribuição de renda de todo o planeta. E é esse escândalo social que explica, basicamente, o caráter que a violência urbana assumiu recentemente entre nós, subvertendo, inclusive, os antigos valores da bandidagem brasileira.
Ou o Brasil acaba com a violência, ou a violência acaba com o Brasil. O Brasil não pode continuar sendo sinônimo de uma aventura generosa, mas sempre interrompida. Ou de uma aventura só nominalmente solidária. Não pode continuar sendo, como dizia Oswald de Andrade, um país de escravos que teimam em ser homens livres. Temos de completar a construção da nação. De incorporar os segmentos excluídos. De reduzir as desigualdades que nos atormentam. Ou não teremos como recuperar a nossa dignidade interna, nem como nos afirmar plenamente no mundo. Como sustentar a mensagem que temos a dar ao planeta, enquanto nação que se prometeu o ideal mais alto que uma coletividade pode propor a si mesma: o ideal da convivência e da tolerância, da coexistência de seres e linguagens múltiplos e diversos, do convívio com a diferença e mesmo com o contraditório. E o papel da cultura, nesse processo, não é apenas tático ou estratégico é central: o papel de contribuir objetivamente para a superação dos desníveis sociais, mas apostando sempre na realização plena do humano.
A multiplicidade cultural brasileira é um fato. Paradoxalmente, a nossa unidade de cultura unidade básica, abrangente e profunda também. Em verdade, podemos mesmo dizer que a diversidade interna é, hoje, um dos nossos traços identitários mais nítidos. É o que faz com que um habitante da favela carioca, vinculado ao samba e à macumba, e um caboclo amazônico, cultivando carimbós e encantados, sintam-se e, de fato, sejam igualmente brasileiros. Como bem disse Agostinho da Silva, o Brasil não é o país do isto ou aquilo, mas o país do isto e aquilo. Somos um povo mestiço que vem criando, ao longo dos séculos, uma cultura essencialmente sincrética. Uma cultura diversificada, plural mas que é como um verbo conjugado por pessoas diversas, em tempos e modos distintos. Porque, ao mesmo tempo, essa cultura é una: cultura tropical sincrética tecida ao abrigo e à luz da língua portuguesa.
E não por acaso me referi, antes, ao plano internacional. Tenho para mim que a política cultural deve permear todo o Governo, como uma espécie de argamassa de nosso novo projeto nacional. Desse modo, teremos de atuar transversalmente, em sintonia e em sincronia com os demais ministérios. Alguns dessas parcerias se desenham de forma quase automática, imediata, em casos como os dos ministérios da Educação, do Turismo, do Meio Ambiente, do Trabalho, dos Esportes, da Integração Nacional. Mas nem todos se lembram logo de uma parceria lógica e natural, no contexto que estamos vivendo e em função do projeto que temos em mãos: a parceria com o Ministério das Relações Exteriores. Se há duas coisas que hoje atraem irresistivelmente a atenção, a inteligência e a sensibilidade internacionais para o Brasil, uma é a Amazônia, com a sua biodiversidade e a outra é a cultura brasileira, com a sua semiodiversidade. O Brasil aparece aqui, com as suas diásporas e as suas misturas, como um emissor de mensagens novas, no contexto da globalização.
Juntamente com o Ministério das Relações Exteriores, temos de pensar, modelar e inserir a imagem do Brasil no mundo. Temos de nos posicionar estrategicamente no campo magnético do Governo Lula, com a sua ênfase na afirmação soberana do Brasil no cenário internacional. E sobretudo temos de saber que recado o Brasil enquanto exemplo de convivência de opostos e de paciência com o diferente deve dar ao mundo, num momento em que discursos ferozes e estandartes bélicos se ouriçam planetariamente. Sabemos que as guerras são movidas, quase sempre, por interesses econômicos. Mas não só. Elas se desenham, também, nas esferas da intolerância e do fanatismo. E, aqui, o Brasil tem lições a dar apesar do que querem dizer certos representantes de instituições internacionais e seus porta-vozes internos que, a fim de tentar expiar suas culpas raciais, esforçam-se para nos enquadrar numa moldura de hipocrisia e discórdia, compondo de nossa gente um retrato interessado e interesseiro, capaz de convencer apenas a eles mesmos. Sim: o Brasil tem lições a dar, no campo da paz e em outros, com as suas disposições permanentemente sincréticas e transculturativas. E não vamos abrir mão disso.
Em resumo, é com esta compreensão de nossas necessidades internas e da procura de uma nova inserção do Brasil no mundo que o Ministério da Cultura vai atuar, dentro dos princípios, dos roteiros e das balizas do projeto de mudança de que o presidente Lula é, hoje, a encarnação mais verdadeira e mais profunda. Aqui será o espaço da experimentação de rumos novos. O espaço da abertura para a criatividade popular e para as novas linguagens. O espaço da disponibilidade para a aventura e a ousadia. O espaço da memória e da invenção.
Muito obrigado”.
Carlos Eduardo Lima (CEL) é doutorando em História Social, jornalista especializado em cultura pop e editor-chefe da Célula Pop. Como crítico musical há mais de 20 anos, já trabalhou para o site Monkeybuzz e as revistas Rolling Stone Brasil e Rock Press. Acha que o mundo acabou no início dos anos 90, mas agora sabe que poucos e bons notaram. Ainda acredita que cacetadas da vida são essenciais para a produção da arte.