Fãs chatos e conservadores estão por aí

 

 

Outro dia a gente postou aqui sobre a importância de revelar canções para as novíssimas gerações. O exemplo da vez era “Running Up The Hill”, de Kate Bush, que havia entrado na trilha sonora da quarta temporada da série “Stranger Things”. Foi o suficiente para que uma horda de jovens fosse apresentada à obra de Bush, uma das mais criativas cantoras e compositoras inglesas dos últimos tempos, uma vez que, a partir da exposição da canção na série, o público foi ouvir Kate nos serviços de streaming e sites online. Uma matéria recente da imprensa inglesa dava conta que, desde o aparecimento da canção na série, Kate Bush já havia faturado mais de dois milhões de dólares em direitos e execuções de “Running Up The Hill”. Nada mau, né?

 

O nosso texto (que você lê aqui) também mencionava algumas outras situações em que filmes, séries e até comerciais de TV serviram como meios para transmissão do conhecimento musical, num mecanismo pra lá de louvável e, até desejável. O conhecimento – ouvir música é conhecimento – precisa ser transmitido, difundido, do contrário, ele morre. Qual não foi minha surpresa quando, também a partir de “Stranger Things”, vi que a imprensa começava a noticiar que fãs do grupo americano Metallica estavam revoltados pela inclusão da canção “Master Of Puppets”, faixa-título do terceiro álbum do grupo, de 1986, na trilha da temporada vigente da série. Segundo as informações, essas pessoas estavam chateadas porque “novos fãs” do grupo estavam surgindo e, segundo eles, eles não eram “legítimos”. O que é uma enorme prova de burrice, certo? Porém, tem um fundamento muito palpável, o medo da mudança, o medo da perda do que é importante, o medo de ver as coisas de outro modo.

 

Este mesmo medo move os conservadores ao redor do mundo. O termo já explica, são pessoas que não querem mudanças, que desejam conservar as coisas como estão, ou que preferem apenas as mudanças de lhes favoreçam. No caso do fã de música popular, o crescente acesso à produção artística via Internet ampliou exponencialmente o alcance de artistas e canções e este mecanismo fugiu completamente dos parâmetros antigos de divulgação. Some-se a isso o velho ranço de ver “sua” banda, “seu” artista favorito sendo apreciado por mais e mais pessoas, não necessariamente identificadas da mesma forma que você e, voilá, o medo de ver o que “é só seu” banalizado e acessado por todos gera esta reação. De fato, “Master Of Puppets”, a canção, já está com mais de quatrocentos e trinta milhões de streamings somente no Spotify e, por mais que o Metallica seja uma banda bastante popular, imagino que haja bastante de “Stranger Things” neste número. A própria banda pronunciou-se sobre o acontecido, afirmando que “qualquer fã é bem-vindo” e que “todos faziam parte da família Metallica”.

 

O fato é que a identificação do fã com o ídolo passa por estas transmissões de sentido e significado, que, em alguns momentos da vida, sugerem que só existem eles, fã e artista no mundo. Porque um entende o outro, a obra de arte em questão serve como identificadora da vida, de fatos importantes, momentos e tempos que se foram e, através, por exemplo, de uma música, é possível recordar e reviver. Tudo isso é humano e explicável, assim como as reações adversas à divulgação pela série. É como se o próprio fá conservador fosse incluído no mesmo balaio do fã novíssimo, perdendo privilégios imaginários, posições de destaque, por fim, visse todo o tempo que dedicou a uma música, ou a um filme, ser igualado por tempos de dedicação menores, menos intensos, algo assim, e a reação é o descontentamento, a distinção. Só que, por mais que tentemos entender essas reações, elas traduzem algo simples de compreender: preconceito. Neste caso, o fã recente da banda é menos importante e “menos fã” do que o mais antigo, conservador. E isso está errado. Esta distinção não existe e não pode pressupor privilégio de qualquer espécie, todos têm o direito a ouvir o que quiserem e se identificarem – ou não – com esta ou aquela música. Se uma banda ou artista não renovar seus fãs, deixará de existir no presente e será condenada a viver apenas como uma recordação.

 

Pensem nisso. E lutem sempre pela transmissão do conhecimento, contem sobre músicas mais antigas que podem servir hoje. A arte visa ser atemporal, nem sempre consegue, mas com o devido empurrão, ela pode fazer milagres, não importa quando. E, vocês, fãs conservadores, cresçam.

CEL

Carlos Eduardo Lima (CEL) é doutorando em História Social, jornalista especializado em cultura pop e editor-chefe da Célula Pop. Como crítico musical há mais de 20 anos, já trabalhou para o site Monkeybuzz e as revistas Rolling Stone Brasil e Rock Press. Acha que o mundo acabou no início dos anos 90, mas agora sabe que poucos e bons notaram. Ainda acredita que cacetadas da vida são essenciais para a produção da arte.

Deixe uma resposta

O seu endereço de e-mail não será publicado. Campos obrigatórios são marcados com *