Existências Despedaçadas em “Corpo Desfeito”

 

 

Jarid Arraes é autora do premiado livro de contos “Redemoinho em dia quente” (Alfaguara, 2019), da obra de poesia “Um buraco com meu nome” (Alfaguara, segunda edição, 2021) e do essencial “Heroínas negras brasileiras em 15 cordéis” (Seguinte, segunda edição, 2020).

 

Esse ano ela vem até nós com “Corpo desfeito”, seu primeiro romance também pela Alfaguara.

 

A dona desse corpo desfeito tem nome, idade, casa, desproteção, sonhos, desilusão.

 

 

Amanda é uma menina de 12 anos, mora no Ceará com a mãe que engravidou de um homem que não quis assumir a filha, o avô alcoólatra e violento e a avó reprodutora dos abusos que ela mesma sofre do marido.

 

“Não sei muito bem como funcionava o sistema de alimentação mútua, mas a dinâmica dos dois parecia ser manobrada em harmonia impecável para que vô Jorge descontasse sua raiva de se achar corno, e em seguida vó descontasse sua raiva de ser chamada de traidora. No caso de vó, a raiva não podia respingar no marido, então caía maciça na cabeça de mainha. Mas mainha não parecia descontar nada em mim”

 

Não há momentos de tranquilidade capazes de proteger a menina e sua mãe desse círculo interminável de violência. Mesmo nas raras horas em que seu vô Jorge parece minimamente humano, Amanda aceita migalhas de carinho consciente de que são esmolas carregadas de falsidade e obrigação com uma criança a quem só cabe um lugar de sombra:

 

“Mas é difícil amar quem machuca o resto do mundo. O carinho recebido tem uma cara que é tão marcante quanto falsa”

 

Quando duas tragédias se abatem sobre a vida da família já despedaçada, a vida mostra à Amanda que os poucos anos de vida não impedem que a violência e a falta de compaixão atropelem sua dignidade.

 

Ela passa a morar somente com sua avó moída pela culpa, que recorre à religiosidade que se vale do medo e da tortura para ser respeitada. Se dizendo merecedora de sonhos divinos, ela faz de tudo para conseguir o que julga ser o total respeito e dedicação de Amanda.

 

As passagens desses embates transbordam dureza, covardia e desespero. Jarid não poupa o leitor da violência, da revolta   e de se questionar se já conheceu alguma Amanda.

 

Se não ouviu o pedido de socorro, não viu os olhos transbordando tristeza, o corpo de menina vertendo cansaço dos serviços de casa intermináveis e cruelmente impostos ou tampouco percebeu o desejo de ser uma pessoa inteira.

 

“Como seria um dia melhor na minha vida?”

 

O final de Corpo desfeito pode ser entendido como redenção ou simplesmente real.

 

Mais uma vez, agora em um novo estilo, a autora mostra com sua escrita única, fluída apesar do tema duro porque é um dos grandes nomes da literatura brasileira contemporânea.

 

É preciso transitar pela nossa produção literária.

 

Inverter a direção do mapa, sair do cânone paulista -carioca, chegar ao Nordeste, ao Ceará e os nomes que povoam o estado de livros potentes, corajosos, viscerais.

 

Parada obrigatória por essa viagem enriquecedora é a obra da cearense Jarid Arraes.

Debora Consíglio

Beatlemaniaca, viciada em canetas Stabillo e post-it é professora pra viver e escreve pra não enlouquecer. Desde pequena movida a livros,filmes e música,devota fiel da palavras. Se antes tinha vergonha das próprias ideias hoje não se limita,se espalha, se expressa.

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