Esbarrei em Lulu Santos
O título do texto é metafórico, claro. Não estava andando pelas ruas simpáticas de Niterói e trombei com o velho Lulu, mas ouvi falar dele após um bom tempo. Lá nos anos 1980, Luiz Maurício era um habituê do rádio e da TV. Suas canções eram frequentadoras assíduas das paradas de sucesso, de programas como Globo de Ouro e Chacrinha, seus discos vendiam bem, ele emplacava umas três, quatro músicas entre as mais tocadas em várias emissoras de rádio…Ele era o que a gente costuma chamar de hitmaker. Sempre teve muito jeito para compor melodias, arranjar e produzir, além de ser um ótimo guitarrista. Bem informado, criativo, ainda que meio antipático ante o senso comum, Lulu, como dizia o outro, era o tal.
Essa condição de protagonismo durou até os anos 1990. Pra ser sincero, ao longo daquela década, Lulu, ainda que em ritmo menos intenso, conseguiu manter-se em evidência. Gravou outros bons discos, emplacou outras boas canções, flertou com mudanças estéticas interessantes e, acho hoje, lançou um álbum fundamental para a música pop: “Eu e Memê, Memê e Eu”, em 1995, quando abraçou a eletrônica dançante em âmbito nacional e teve a coragem de chamar os MCs William e Duda, ambos do Morro do Borel, para participar do disco. Lulu trocava ali o paradigma do rock pelo da música dançante, fosse ela a disco music, o funk carioca ou a música eletrônica, gêneros e estilos considerados “menores” pela inteligentzia musical nacional. Ele não deu bola, mergulhou nos sons e se saiu bem. O impacto nunca mais deixou sua música.
Até 2003, pelo que me lembro, Lulu conseguiu compor boas canções. A última a me chamar a atenção foi “Já É”, uma pepita de ouro solitária em “Bugalu”, disco lançado naquele ano distante. Depois…nada. Uma olhada na produção dos últimos 16 anos, mostrará que Lulu tentou. São nove discos, entre originais, ao vivo e coletâneas. Gravou tributos a Roberto Carlos e Rita Lee, ambos péssimos, tentou ressuscitar um velho hit oitentista – “Popstar” – de João Penca e Seus Miquinhos Amestrados – fez shows, participou de festivais…Mas nada do que fez foi tão importante assim. Lulu tornou-se, na verdade, um jurado do programa The Voice Brasil, na Rede Globo. Ele está lá desde 2012, há sete temporadas. É o único que está presente desde o início da atração televisiva. Lulu tornou-se um … jurado. Logo ele, que nunca cantou bem. Sempre foi um desses vocalistas esforçados, com habilidade para adaptar composições ao seu registro. Com o tempo, suas gravações ficaram próximas do constrangedor, ante o desgaste evidente da voz. Tudo bem, isso não é decisivo para um cantor, mas, carambas, para um jurado que vai avaliar outros cantores…Enfim, vale tudo.
O fato é que Lulu voltou aos noticiários há poucos meses, assumindo sua relação com Clebson Teixeira, com quem vive desde 2018. Como fato adjacente – ou não – veio um novo álbum, intitulado “Pra Sempre”. Confesso que passou batido na época, ante o desinteresse pela carreira do músico e pela importância da notícia. Afinal de contas, Lulu está aí desde sempre, viveu muito tempo ao lado da jornalista Scarlett Moon, mas a notícia não chegou a surpreender. Soou mais como um alívio para um homem que, aos 66 anos, finalmente encontrou a paz e a força para assumir sua sexualidade em público. Oportunista ou não, Lulu confessou que o novo álbum era uma espécie de “álbum de casamento”, um compêndio de crônicas sobre a união dele e de Clebson. O que nos leva de volta ao “esbarrão” com Lulu. Na arruinada Saraiva do Plaza Shopping, topei com o “Pra Sempre”. Não quis comprar, preferi ouvir pelo Spotify.
É um disco médio-pra-bom, com a produção temerária de ex-integrantes da … Banda Cine. Mas havia alguma coisa ali que ultrapassava a maré de mediocridade reinante no pop nacional. Uma canção tinha o título de “Orgulho e Preconceito”, bem apropriada ao contexto. Perdida no meio dos originais de Lulu, uma cover de … “The Look Of Love”, canção de Burt Bacharach, outro acerto. Como sou uma pessoa carente de informações técnicas, decidi – como falam os neoliberais – investir na compra do disco. Tem arranjos de orquestra, participação especial da banda paulista O Terno e do indefectível Memê, justo na produção de “The Look…”. Novamente ouvi o álbum e notei algo interessante. A voz sofrida e castigada pelo tempo fez mais sentido em meio ao propósito do álbum. As batidas eletrônicas, os arranjos banais – é verdade – mas bem executados, as autorreferências (citação de “Casa” em “Tão Real” e a batidinha de “Como Uma Onda” em “The Look Of Love”) e o próprio tema do disco me fizeram repensar “Pra Sempre”.
Talvez este seja um disco digno de figurar na discografia de Lulu pré-2003, algo que é surpreendente. Versos como “seu amor tem sido tão real pra mim, me fez saber distinguir o bom do nem tanto assim” (“Tão Real”); “esta canção é pra você nunca mais ter que sussurrar quando diz que me ama, pra te libertar de tanto julgamento alheio, pra você poder dizer sem receio: eu te amo” (“Orgulho e Preconceito”) fazem a diferença. Talvez seja o primeiro disco em que Lulu tem algo a dizer que ultrapassa a esfera pessoal, ainda que o ponto de partida seja uma relação amorosa. Não me parece uma ação visando o tal “pink money” do qual falam por aí. Lulu, por mais que seja um funcionário da TV, não usaria de um expediente desses. Ele parece sincero, como diz sua canção do mesmo nome, lá de 1985: “Você não pode me estranhar só porque eu falei a verdade, pior seria te iludir, o tempo todo, não vejo vantagem”.
Ainda que Lulu não seja mais essa Coca-Cola toda, “Pra Sempre” é uma boa novidade em seu catálogo e o traz de volta de um limbo terrível. A partir dele, não dá pra dizer, somente, que ele é um jurado da TV. Ele voltou a ser mais que isso. Só falta saber por quanto tempo.
Carlos Eduardo Lima (CEL) é doutorando em História Social, jornalista especializado em cultura pop e editor-chefe da Célula Pop. Como crítico musical há mais de 20 anos, já trabalhou para o site Monkeybuzz e as revistas Rolling Stone Brasil e Rock Press. Acha que o mundo acabou no início dos anos 90, mas agora sabe que poucos e bons notaram. Ainda acredita que cacetadas da vida são essenciais para a produção da arte.
Acho que Lulu não teve/tem o reconhecimento que merece como músico e compositor . Isso não tem nada a ver com sucesso e vendagem de discos.
Ótimo texto!