Entrevista – Jards Macalé
“O samba é o CPF do Brasil” – Jards Macalé
– Alô! Carlos Eduardo? Aqui é o Jards.
A voz animada e profunda do outro lado da linha faz uma saudação tão simpática que parece
a de um velho conhecido. E talvez seja. Jards Macalé, 75 anos, sempre esteve presente.
Cantor, compositor, “maldito” da MPB e dono de um estilo praticamente único. Esteve sem
lançar disco com material inédito por 20 anos, mas não parou quieto, dividino seu tempo
entre álbums de releituras e tributos, shows ao vivo e tudo mais. Agora, depois disso
tudo, “Besta Fera”, seu novo trabalho, surge com uma cara sombria, típica do nosso tempo
transcorrido e vivido.
Nesta entrevista, Jards fala do álbum, do Rio, de política, do público e da Orquestra
Tabajara com o carinho e a malandragem que só um carioca da Tijuca pode ostentar.
– Besta Fera é o seu primeiro disco de inéditas em 20 anos. Por que você ficou tanto
tempo sem lançar material inédito?
Eu me afastei do mercado por algum tempo. Passei a sentir até preguiça, mas voltei quando
aceitei o convite para gravar com o Naná Vasconcelos no disco dele, o “Let’s Play That”
(lançado em 1994 pelo percussionista pernambucano). Daí eu senti vontade de voltar mesmo.
Gravei pela Continental, pela Atração Musical. Fiz discos de releituras, de tributo a
outros artistas, a mim mesmo (risos). O artista revê sua obra e sempre pode fazer algo
diferente. Depois vieram os discos pela Biscoito Fino, um deles homenageando o repertório
do Moreira da Silva, com quem eu trabalhei por mais de 40 anos. Daí fiz um show no Rio
Grande do Sul com a minha banda atual. E pintou o edital da Natura, que falava em músicas
inéditas. Daí quando conseguimos a aprovação, fomos gravar no estúdio Red Bull, em São
Paulo.
– O que torna o Besta Fera um disco único dentro da sua obra?
Este é um disco de Brasil 2018/19. Dsse 2019 que ninguem esperava.
– Besta Fera é um disco que se identifica com uma música brasileira atemporal, bem
informada, rascante e que sobrevive em meios alternativos. Alguma semelhança com o que
você já fazia em 1972, quando estreou em disco?
Pois é. Ele tem samba, tem bolero, tem músicas como “Buraco da Consolação”, com o Tim
Bernardes, que tem um arranjo que parece com alguma coisa da Orquestra Tabajara com o
maestro Severino Araujo. Eu nunca fui tropicalista, eu fui pré e pós-tropicalista,
naqueles tempos eu estava estudando pra ser músico, estudando cello, essas coisas. Mas
tem a coincidência temporal, circunstancial.
– Como você vê a renovação no seu público?
Eu adoro. A garotada presta muita atenção, chega nos shows conhecendo os discos, cantando
as músicas. Eu adoro, eles sabem as letras, “Hotel das Estrelas”, “Vapor Barato”, eles
cantam tudo.
– Como surgiu a sua aproximação com Kiko Dinucci e o pessoal de São Paulo?
O Thomas Hares (baterista e produtor do disco) conhece esse pessoal mas, antes dele, eu
vi shows dessa galera em vários lugares. Do Metá Metá, do Rômulo Froes, dop Tim
Bernardes, da Ava Rocha…Houve uma homenagem ao mmeu repertório e eu fui conhecendo
maios o pessoal. Daí, quando pintou o edital da Natura para fazer o disco, eu já sabia
que queria que fosse com eles.
– O que você acha dessa atuação de músicos jovens influenciando quem os influenciou? É o
caso dos discos recentes da Elza Soares, agora do seu…Tanto os da Elza quanto o seu
passam um sentimento de banda, de criação coletiva…
Sim, eu sempre busquei isso como o músico. Ser e servir de influência para outros
músicos. Os arranjos são coletivos, todo mundo deu seus palpites, não podia ser diferente
disso. Quando eu arranjei o “Transa” (disco clássico de Caetano Veloso, lançado em 1972,m
quando o baiano voltou do exílio em Londres) foi assim também.
– Qual sua canção preferida no disco?
Eu gosto de todas. Filho você não escolhe (risos). Mas eu posso dizer que tenho um xodó
especial por “Buraco da Consolação”, por causa do Tim Bernardes. Ele é o cara mais novo
dentre esse pessoal que participou do disco e divide comigo a admiração pelo disco
“Jamelão Interpreta Lupicínio Rodrigues” (lançado em 1972) com a Orquestra Tabajara e o
maestro Severino Araújo. Eu adoro o arranjo, eu fiz questão de dizer para o Thomas
(Hares, produtor do disco): Destaque o trombone!
– Você tem uma abordagem do samba como um ritmo que não parece feliz e dançante,
funcionando muito mais com um veículo para expressar inquietação e dor. O que você acha
dessa visão do estilo, que é bem próxima do que os jovens que te acompanham no disco
fazem…
O brasileiro expressa suas dores ao ritmo do samba, não adianta. É paradoxal, mas é o que
somos. Existe o samba bem humorado, aquela coisa dos anos 1950, do Moreira da Silva,
histórias bem humoradas. Não adianta, o samba é o CPF, o RG do Brasil.
– Você tem uma imagem e uma identidade muito ligada ao Rio de Janeiro que não aparece nos
cartões postais. Como você vê a cidade hoje?
Eu sou carioca da Tijuca, da Muda (bairros da Zona Norte do Rio). Lá em 1998 eu gravei um
samba chamado “Cidade Lagoa”, que tem os seguintes versos: “Essa cidade que ainda é
maravilhosa/Tão cantada em verso e prosa/Desde o tempo da vovó/Tem um problema vitalício
e renitente/Qualquer chuva causa enchente/Não precisa ser toró”. E o que a gente teve há
poucos dias? Aquela enchente horrível. A Praça Saens Peña (reduto tijucano tradicional)
está qualquer nota. Ali, no Metro Boavista (cinema já extinto) eu vi meus primeiros
filmes. Esse prefeito é uma merda. No Rio tem essa coisa esquizofrênica – e no Brasil,
mas muito no Rio – se vota muito mal. São eleitas pessoas que detestam a cidade. Mas,
mesmo assim, apesar delas, ela continua sendo maravilhosa. A topografia do Rio é
impressionante.
– A situação política do país te inspirou em alguma composição? Como você está vendo as
coisas na política, sociedade?
Pois é, ninguém imaginava esse 2019. Eu vejo com muita preocupação porque as
manifestações políticas que surgiram são retrógradas. Parece que a gente está ainda no
século 20, às vezes no século 17, sei lá. Mas nós estamos no século 21, o mundo está no
século 21 e não tem como evitar isso.
Se tem um reflexo desse momento é a própria “Besta Fera”, que foi escrita pelo Gregório
de Matos Guerra (poeta barroco baiano do século 17, conhecido como Boca do Inferno).
– Quais são os planos para divulgar o disco? Shows, turnê?
Olha, no dia 23 de março tem um show no Auditório do Ibirapuera, em São Paulo. No dia 06
de abril tem a apresentação no Circo Voador. Quero levar esse show pra vários lugares e
vou tocar aonde tiver espaço.
– O que você tem ouvido ultimamente?
Baco Exu do Blues, que é muito bom. Mas tenho ouvido aquele disco do Louis Armstrong com
o Oscar Peterson (“Louis Armstrong Meets Oscar Peterson”, de 1957). Outro dia fui jantar
na Churrascaria Gaucha (no bairro das Laranjeiras, Zona Sul do Rio) e dançar ao som da
Orquestra Tabajara com a minha mulher. Que coisa linda. Também ouço sempre o Tamba Trio,
Os Cariocas, as canções instrumentais do Tom Jobim…João Gilberto.
– O que você diria sobre seu disco para alguém que nunca te ouviu?
Ouça.
Por Carlos Eduardo Lima
Nota do editor: Macalé respirou fundo e disse, solenemente: “Ouça”.
Carlos Eduardo Lima (CEL) é doutorando em História Social, jornalista especializado em cultura pop e editor-chefe da Célula Pop. Como crítico musical há mais de 20 anos, já trabalhou para o site Monkeybuzz e as revistas Rolling Stone Brasil e Rock Press. Acha que o mundo acabou no início dos anos 90, mas agora sabe que poucos e bons notaram. Ainda acredita que cacetadas da vida são essenciais para a produção da arte.