Criolo lança seu melhor álbum

 

 

 

Criolo – Sobre Viver
(Oloko Records)
38′, 10 faixas

 

5 out of 5 stars (5 / 5)

 

 

 

 

Uma porrada. Não há outro jeito de descrever “Sobre Viver”, o novíssimo álbum de Criolo. Gestado no luto do cantor e compositor paulistano – que perdeu a irmã durante a pandemia – o trabalho tem 10 faixas que enumeram as questões sociais, políticas e econômicas que fazem o país ser tão desigual. Criolo faz isso de forma tão natural e visceral que chega a causar constrangimento no ouvinte. Dono de um estilo muito pessoal e de uma voz marcante, Criolo arremessa as dez canções na nossa cara sem qualquer dó e nos faz questionar se o estilo que ele está cantando é uma nova forma de rap. Digo isso porque o registro dele é muito mais rico que o habitual dos cantantes do estilo, que se limitam a falar ou pouco mais que isso. Criolo tem alcance muito maior – não à toa, registrou seu último álbum, “Espiral de Ilusão” dentro dos domínios do samba. Hoje, cinco anos depois deste último trabalho, ele convoca o duo Tropikillaz para produzir as canções ao lado de Daniel Ganjaman e Marcelo Cabral.

 

O resultado é uma sintonia mais fina com uma moderna música eletrônica internacional, cheia de samples e de instrumentos acústicos adjacentes, que dão uma camada extra de percepção sonora, que vai muito bem com a excelência das letras. Aliás, uma das críticas mais batidas ao rap é que as letras são mais relevantes diante da base sonora, algo que, definitivamente, aqui não acontece. Criolo não tem qualquer pudor – nem poderia – em abordar as mazelas nacionais. Racismo, preconceito religioso, caos sendo gestado e explodindo nas ruas em forma de violência, sem falar no desgoverno que sequestrou a presidência do país, diretamente responsável pela intensificação da miséria social e humana do nosso país. O canto elegante e raivoso – uma mistura rara e desconcertante – de Criolo vocifera com tal contundência que ele mais parece um correspondente de guerra em meio a uma batalha terrível sendo travada em tempo real.

 

Algumas canções se destacam em meio Às outras. De cara, “Diário do Kaos”, coloca o ouvinte a par do que está para acontecer, numa narrativa cotidiana de várias formas banalizadas de violência, mas também transbordando de esperança pelo poder do amor e da música como formas de resgate das vítimas desta brutalidade. Mas Criolo faz isso com pé fincado na realidade, não há ufanismo em “Sobre Viver”. “Pretos Ganhando Dinheiro Incomoda Demais” atualiza, tristemente, a lógica social do Brasil desde os tempos da colônia. “Moleques São Meninos, Crianças São Também” propõe um híbrido rap-reggae com elegância e contundência, traçando paralelos entre ausência do estado como causa direta da criminalidade que resulta em violência sem precedentes para populações negras sem condições de existência sem a ajuda pública. “Ogum Ogum” e “Yemanjá Chegou” soam como registros de existência e identidade em relação às origens africanas em meio a uma sociedade que acha sensacional ser branco e europeu a todo custo.

 

Milton Nascimento participa com “Me Corte Na Boca do Céu, A Morte não Pede Perdão”, que guarda certa dinâmica de samba em sua melodia. A voz do veterano cantor mineiro, lenta, sofrida e castigada pela passagem do tempo, funciona como uma oposição quase fantasmagórica ao registro claríssimo de Criolo, num efeito muito bonito e assustador. “Sétimo Templário” é outro registro terrível, sobre “o presidente que te explode e depois pergunta se é matança”, num arranjo com teclados, guitarras e um instrumental que, apesar de rico, deixa o espaço necessário para que a voz de Criolo reine absoluta.

 

“Sobre Viver” é um álbum desconcertante e necessário. Deveria ser ensinado nas escolas.

 

Ouça primeiro: todo o álbum

 

 

CEL

Carlos Eduardo Lima (CEL) é doutorando em História Social, jornalista especializado em cultura pop e editor-chefe da Célula Pop. Como crítico musical há mais de 20 anos, já trabalhou para o site Monkeybuzz e as revistas Rolling Stone Brasil e Rock Press. Acha que o mundo acabou no início dos anos 90, mas agora sabe que poucos e bons notaram. Ainda acredita que cacetadas da vida são essenciais para a produção da arte.

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