“Chamas da Vingança” – A Saga do Urso Creasy
Tony Scott era um diretor criativo e fã de filmes de ação. Irmão de Ridley Scott, ele suicidou-se em 2012 e deixou uma filmografia interessante. Uma olhada mais atenta dará conta de que Scott adorava trabalhar com Denzel Washington. Foram cinco longas em que o ator americano emprestou seu talento e carisma a papéis concebidos para mostrar o que o homem ocidental “tem de bom em seu coração”, não importando que, na maioria das vezes, precisasse recorrer a desvios e desrespeitos frontais à lei. A parceria começou em 1995, em “Maré Vermelha”. Depois vieram “Chamas da Vingança” (2004) e intensificou-se a partir de “Déjà Vu” (2006), rendendo ainda “Sequestro do Metrô 123” (2009) e “Incontrolável” (2010). Em termos simplistas, todos são bons filmes, mas nenhum deles rende um personagem tão carismático como o misterioso e implacável John W. Creasy.
A história é manjada. Creasy é um ex-agente da CIA, daqueles que ajudaram a matar insurgentes em vários cantos do mundo. O cara esteve no Líbano, no Afeganistão, em Angola, e em qualquer lugar onde “a liberdade” esteve “ameaçada”. Fico imaginando as barbaridades cometidas por ele em seu auge, mas, no filme, Creasy surge como um quarentão desiludido com a vida, alcoólatra e suicida. Perdeu a alegria de viver ou, em tempos pós-Guerra Fria, tornou-se desnecessário. Sendo assim, ele consegue um bico como guarda-costas no … México. Quem arruma o “job” é seu velho amigo Rayburn, vivido por Christopher Walken, ex-parceiro de carnificinas do passado. Como está completamente sem perspectivas, Creasy aceita e vai ser o protetor de uma menina chamada Guadalupe Ramos. Ela é filha de um empresário mexicano, casado com uma americana. Sendo assim, Pita – como é chamada – é lourinha e angelical, biotipo de Dakota Fanning na época. Sua mãe é vivida pela ótima Radha Mitchell e o pai é interpretado pelo ex-Sr. J-Lo, Marc Anthony, canastríssimo e lamentável.
Creasy começa o trabalho ainda em clima de bebedeiras e melancolia. Compra uma coletânea de Linda Ronstadt num camelódromo do Centro da Cidade e fica ouvindo “Blue Bayou” movido por doses cavalares de whisky e tentativas de ler a Bíblia, algo que todo ser lamentável e questionável faz para sentir-se perdoado, mas aí já é outra história. O fato é que a interação de Creasy e Pita gera uma amizade com viés paternal, uma vez que a menina é carente por conta das viagens constantes do pai e tem uma, digamos, demanda reprimida de carinho e afeto, que caem como uma luva em Creasy, que começa, aos poucos, a sair do buraco por conta disso. Logo Pita terá um papel definitivo no cotidiano dele, até que…bem, aí começa a segunda parte do filme.
Pita é alvo das ações criminosas de policiais corruptos, numa trama que resulta em seu sequestro. Creasy tenta evitar mas é ferido num tiroteio e se recupera a duras penas. Ele pede ajuda a Rayburn para investigar o que aconteceu com a menina e recebe salvo conduto da mãe, que o autoriza a matar todos os envolvidos, uma vez que a polícia mexicana é incapaz de avançar definitivamente na apuração dos fatos. Sendo assim, como diz o próprio Rayburn a um ocasional policial bonzinho, “Creasy é um artista na arte de matar e ele está prestes a pintar sua obra prima”. Sendo assim, pessoal, a partir daí, Denzel/Creasy assume um modo sanguinário poucas vezes visto num ator respeitável. Os integrantes corruptos da polícia, sob uma associação conhecida como “La Hermandad”, vão sendo capturados, torturados e mortos sem cerimônia. Creasy corta os dedos de um, mata a sangue frio – com tiros de escopeta – outro, agride uma mulher meio idosa, ateia fogo num velho cinema onde está acontecendo uma rave – destruindo o local em seguida – e arranca orelhas e mãos.
Há dois momentos antológicos. Na captura de um chefão corrupto da tal La Hermandad, Creasy leva um lança-foguetes ao apartamento de dois velhinhos, situado em posição estratégica para atingir o veículo suspeito e sua escolta. O senhor diz pra ele: “na igreja aprendemos a perdoar”. Creasy responde, enquanto ajusta a mira: “isso é com Deus e eles, eu só marco o encontro”. Em poucos minutos, ele destruirá dois carros, matará vários seguranças e capturará o tal chefão, que será amarrado num capô de carro e terá, introduzido em seu reto, uma dose letal de explosivo plástico C4, que Creasy acionará se ele não confessar o que fez e apontar os outros envolvidos, tudo isso em quatro minutos. O resto é história.
Denzel Washington é um ator que tem talento inegável e compromisso com valores estéticos, digamos, mais elevados. A impressão que dá é que ele precisa fazer esses filmes para poder financiar e se aventurar em outras produções com viés mais artístico, como o recente “Um Limite Entre Nós”, em que contracena com Viola Davis. Ou mesmo “Roman J Israel”, em que vive um advogado excêntrico e politizado. Só que Denzel é tão bom ator e transmite uma dose tão grande de carisma e talento, que – para usar um termo caro aos coachs – potencializa filmes que seriam bombas insuportáveis sem ele, como “O Protetor”, “O Livro de Eli” e o próprio “Sequestro do Metrô 123”, em que ele divide os méritos com John Travolta. Essa faceta brucutu do ator lhe rendeu um sensacional desempenho – talvez o melhor de sua carreira até hoje – quando ganhou o Oscar por “Dia de Treinamento”, longa dirigido e roteirizado por Antoine Fuqua, no qual interpreta um raro vilão, o policial inescrupuloso Alonzo Harris. Não por acaso, Fuqua e Denzel se deram tão bem, que ele passou a encarnar o ex-agente Robert nos dois longas “O Protetor”, nos quais dizima sem cerimônia ou moral vários bandidões, mas aí já é assunto para mais um ótimo “É ruim mas eu gosto”.
Carlos Eduardo Lima (CEL) é doutorando em História Social, jornalista especializado em cultura pop e editor-chefe da Célula Pop. Como crítico musical há mais de 20 anos, já trabalhou para o site Monkeybuzz e as revistas Rolling Stone Brasil e Rock Press. Acha que o mundo acabou no início dos anos 90, mas agora sabe que poucos e bons notaram. Ainda acredita que cacetadas da vida são essenciais para a produção da arte.