Caetano: Treze Músicas Para Guardar

 

 

Imagine reduzir a carreira de um compositor tão plural como Caetano a … treze músicas. Sim, esta é a missão deste artigo, repetindo a ousadia já feita com Legião Urbana e Paralamas do Sucesso, e agora indo, como dizem por aí, para outro patamar.  São vários discos, coletâneas, colaborações, fases, jeitos de corpo e tudo mais que caracteriza a obra de um sujeito como Caê. Ele é vários, muitos, múltiplos, uma baleira, uma telenovela, um alaúde, um trem, uma arara, tudo ao mesmo tempo agora.  E nesta semana, em que ele gravou cover para “Hey Jude” e é figura central de um documentário sobre prisão na ditadura – “Narciso de Fèrias” – a gente resolveu fazer esta incursão cirúrgica em seu cânone.

 

No meu caso pessoal, ouço Caetano desde o berço. Minha mãe era sua fã e foi em seus LPs que me aventurei pela primeira vez no ato sagrado de ouvir música. Havia Caê, mas havia também Gal, Bethânia, Chico. Dei sorte e me familiarizei com canções desses gigantes e em momentos como “Qualquer Coisa”, “O Leãozinho” e similares já muito cedo,  me tornei amigo de Caetano. Ele nem desconfia, mas isso é verdade absoluta. Fui e voltei nas predileções por música, mas ouvir o que o nunca-velho compositor tem a dizer é como fazer o caminho de casa, pra rua Constante Ramos, Copacabana, em algum lugar de um passado que hoje é presente sem machucar ou dar saudade.

 

Pra fazer esta seleção enxuta demais, tive que deixar muita coisa querida e boa pelo caminho. Ficaram as já mencionadas “Qualquer Coisa” e “Leãozinho”. Também ficaram “Podres Poderes”, “Rapte-me Camaleoa”, “Lua e Estrela”, “Como 2 e 2” ao vivo, “Muito Romântico”, “Love, Love, Love”, “Tigresa”, canções que menciono aqui como um jeito maroto para não barrar-lhes a presença neste momento tão solene. Sem falar nas obras primas que ele compôs para outros, como pra irmã Bethânia, “Reconvexo”, “Purifiacar o Subaé”…

 

Sim, estas são as minhas treze canções básicas da obra de Caê. Tem Tropicália, tem faixa curta, faixa enorme, música em inglês, análises de conjuntura, canções de amor, versos absolutamente irretocáveis e a minha cara exposta pra receber beijos e sopapos sobre escolhas equivocadas ou não. Venham.

 

 

13 – Sim/Não (1981) – da safra caseira pré-adolescente lá em casa. De “Outras Palavras”, que também tem a soberba faixa-título, “Lua e Estrela” e a intrincada “Rapte-me Camaleoa”. “Sim/Não”  é uma passeada por Salvador, coisa que minha mãe fez naquele tempo, indo e vindo umas duas vezes, de ônibus Itapemirim, por medo de voar. “Afoxé, jeje, nagô…” eu cantava isso criança, sem nem saber a importância dos versos em iorubá. Caetano me ensinou iorubá.

 

 

 

12 – Giulietta Masina (1987) – do disco homônimo de 1987, uma das minhas mais importantes descobertas, já no fim do meu colégio.  Aqui tem “Fera Ferida”, “O Ciúme”, entre outras, mas foi a canção com andamento de quase-reggae, lenta, mântrica, falando de uma tal Giulietta Masina, que me cativou. “Nossa, é parecida com ‘Cajuína’, nossa é misteriosa”…Na época, 16 anos, não sabia que a canção era para a esposa de Frederico Fellini, a atriz italiana de mesmo nome. O verso “aquela cara é o coração de Jesus”, que sempre me emocionou sem eu ser religioso, fez total sentido quando vi sua foto, muito tempo depois, já na Internet, ouvindo a canção.

 

 

 

11 – Tempo de Estio (1978) – uma canção conhecida na voz do cantor Marcelo, mas que tem sua origem no ótimo álbum “Muito”, que é um dos meus preferidos de Caetano. É uma de suas homenagens ao Rio de Janeiro, mais especificamente às mulheres e a enumeração dos nomes é uma lindeza. Além da levada dançante da canção, há uma coda de piano e baixo, a caminho do fim da faixa, que dá um certo susto positivo no ouvinte, mas que mostra a belezura da obra de Caetano neste fim de anos 1970.

 

 

 

10 – O Homem Velho (1984) – faixa do controvertido “Velô”, um disco “rock” de Caetano, que nunca chegou a integrar o estilo – não como “Raça Humana”, de Gil, lançado no mesmo ano, conseguiu. Apesar disso, “Velô” tem boas canções como “Podres Poderes”, “O Quereres” e esta soberba “O Homem Velho”, composta por um Caetano quarentão, numa de suas raras considerações sobre o passar do tempo tendo ele mesmo como sujeito. Aqui são enumeradas as virtudes que só se consegue quando já estamos mais rodados nesta estrada e versos lindos surgem como “o homem velho é o rei dos animais”. Uma beleza.

 

 

 

9 – Superbacana (1967) – e se existisse um um super-herói tropicalista? Um desses com capa e máscara, como ele seria? Essa é a minha visão ingênua desta canção, que tem menos de um minuto e meio, lançada no primeiro disco de Caetano. Enquanto muita gente chora com   “Alegria, Alegria” e delira com a latinidade de “Soy Loco Por Ti América”, duas colossais canções que estão aqui, eu me divirto com a micro-análise da conjuntura que Caetano faz, bem jovem, daqueles tempos futuristas que haviam chegado. E, como habitante de Copacabana, me identificava de alguma maneira com todas aquelas rimas.

 

 

 

8 – Saudosismo (1968, versão 1986) – canção que foi lançada em compacto, com acompanhamento dos Mutantes, recebeu versão de Gal Costa, mas que, a meu ver, tem, nesta gravação de 1986, a sua expressão máxima. Aqui Caetano usa apenas voz e violão para homenagear João Gilberto e a Bossa Nova. Os versos são lindos, tristes, resignados, como duas pessoas que compartilham um passado comum. Sabemos, Caetano e a Bossa, via João, são criatura e criadores. Poucas vezes alguém conseguiu sintetizar um projeto de futuro que não existiu em um verso, no caso “eu, você, depois, quarta-feira de cinzas no país e a notas dissonantes se integraram ao som dos imbecis”.

 

 

 

7 – Fora da Ordem (1991) – outra das maravilhosas análises de conjuntura que Caetano faz tão bem, dessa vez sobre a entrada na década de 1990 tendo a farsa neoliberal do “fim da História” como pano de fundo. Aqui nesta panela de barro cabem a globalização como farsa e a globalização como fábula, para usar as ideias de Milton Santos, baiano como Caê, por inspiração. Os idiomas, os versos, o ritmo, o aceno indiscreto ao funk e ao rap – que se concretizariam mais tarde, em “Haiti”, tudo está presente nesta canção genial.

 

 

 

6 – Oração ao Tempo (1979) – pequena-grande obra prima registrada no meu disco preferido de Caetano, “Cinema Transcendental”. Pra quem estuda a História, não só os fatos, mas como é feito o próprio lidar com a ideia de ‘tempo’ e como ela muda ao longo do … tempo, é especialmente impressionante ver como a letra da canção consegue dissolver qualquer abordagem mais concreta do assunto. O “tempo” para Caetano é fluido, incontável, em movimento, é como se ele fosse um sábio integrante da Escola dos Annales francesa, inovando o jeito de fazer História. E, bem, a melodia e o arranjo são de partir o coração até de uma estátua.

 

 

5 – You Don’t Know Me (1971) – lembro até hoje do dia em que ouvi esta canção pela primeira vez. Era o tempo da Uerj, já mais velho, redescobrindo a música feita aqui. Talvez tenha sido na casa da Ana Bartholo, ou não, mas foi com meus amigos Ricardo Benevides e Leonardo Salomão que abri a boca diante da mistura de inglês, português, exílio, saudade, casa, pátria, Bahia, Londres e tudo ao mesmo tempo. A voz de um Caetano jovem, de 20 e poucos anos, soando como as nossas, um pouco mais novos que ele então. Era como uma máquina do tempo-espaço conectada em forma de canção. Um troço que até hoje não entendi totalmente. E nem quero.

 

 

4 – Este Amor (1989) – “Estrangeiro” é o meu segundo disco mais querido de Caetano Veloso, só perdendo para “Cinema Transcendental”. Às vezes há uma inversão nessas posições e, durante os anos 1990, ele foi absoluto. Esta canção é uma espécie de declaração final de amor de Caetano para Dedé, sua ex-esposa.  A letra é indescritivelmente bela “o que ela me fez sofrer, o que ela me deu de prazer, o que de mim ninguém tira” e mostra o quanto somos pequenos perto do que sentimos pelas pessoas. Esta é a canção de amor preferida dentre todas as que ele gravou e olha que foram muitas. Muitas.

 

 

3 – Um Índio (1977) – secretamente eu sempre sonhei com a letra dessa música se realizando como uma espécie de retratação final do genocídio europeu na América Latina. Que uma espaçonave asteca, um disco-voador inca ou uma frota de cruzadores warp maias cercassem a Terra e dela viessem vários deuses astronautas, reparando a presunção branca de que qualquer avanço tecnológico não-branco no passado da humanidade seja obra de “aliens” ou algo assim. Que a verdade se revelasse, que fôssemos apresentados ao conhecimento definitivo, que o ponto equidistante entre o Atlântico e o Pacífico ficasse dentro do nosso coração.

 

 

 

2 – O Estrangeiro (1989) – houve tempo em que eu era capaz de cantar esta letra de seis minutos de duração imitando as inflexões, os trejeitos e entendendo pouco do que Caetano canta aqui. À medida em que o tempo foi passando, fui entendendo mais, compreendendo mais e pensando como era possível alguém enfiar tanta informação acadêmica e pop numa canção…Isso aqui é genial e atemporal, fim. Até hoje eu uso frases como “o certo é saber que o certo é certo” ou “somos cegos de tanto ver”.

 

 

 

1 – Trilhos Urbanos (1979) – o passeio de Caetano por sua Santo Amaro da Purificação, andando via trolley ou bonde, revisitando seu passado, olhando para vários outros caetanos que lhe acenam a mão.  Me apaixonei por ela aos oito anos de idade, ouvindo na vitrola lá de casa. Ainda hoje ela me comove pela doçura, pela simplicidade e pela força da letra e do assovio, que nunca consegui reproduzir.

CEL

Carlos Eduardo Lima (CEL) é doutorando em História Social, jornalista especializado em cultura pop e editor-chefe da Célula Pop. Como crítico musical há mais de 20 anos, já trabalhou para o site Monkeybuzz e as revistas Rolling Stone Brasil e Rock Press. Acha que o mundo acabou no início dos anos 90, mas agora sabe que poucos e bons notaram. Ainda acredita que cacetadas da vida são essenciais para a produção da arte.

4 thoughts on “Caetano: Treze Músicas Para Guardar

  • 16 de setembro de 2020 em 22:02
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    Excelente lista, sem os lugares-comuns que são vários em sua discografia. Só acrescentaria “milagres do povo” e “o ciúme”, do disco de 87. Pra mim, a canção mais dolorosamente bela que ele já fez.

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    • 17 de setembro de 2020 em 12:46
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      Opa, Zózimo, muito obrigado por sua resposta. “Milagres” e “Ciúme” chegaram fortíssimas às finais.

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  • 14 de setembro de 2020 em 15:49
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    Obrigado, Fernando! Ouça “Estrangeiro”, é um discaço.

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  • 14 de setembro de 2020 em 15:20
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    Rapaz, que difícil sua tarefa!!
    Já pensei em fazer isso, minhas canções preferidas, mas, ainda não me sinto capaz. Foi interessante ler sobre sua lista porque descobri canções que passei “batido” na discografia de Caetano. Por exemplo, o disco “O estrangeiro” não escutei, erro de minha parte, pois confesso que dei pouca importância para a discografia dos anos 80 dele.
    Ótima lista, agradecemos.

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